Ditadura usou parentes como isca para capturar militantes políticos
Documentos secretos dos Estados Unidos mostram que a ditadura militar brasileira usou a prisão de parentes como isca para capturar militantes políticos que eram os verdadeiros alvos dos órgãos de repressão.
É o caso do professor e dramaturgo Pedro Vianna, que pediu asilo político e se exilou no Chile. A situação dele foi monitorada por diplomatas estadunidenses.
A reportagem analisou arquivos dos chamados "disclosed documents" do Departamento de Estado dos EUA, sobre o período da ditadura militar brasileira. Muitos ainda possuem trechos censurados pela NSA/CSS (National Security Agency/Central Security Service).
"Pedro Viana, um estudante de economia de 22 anos... também foi preso na época da Operação Gaiola porque seu cunhado está envolvido em atividades subversivas", descreveu William Rountree, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em telegrama enviado ao Departamento de Estado, em 13 de janeiro de 1971.
A chamada Operação Gaiola foi montada para tirar de circulação intelectuais, artistas e pessoas ligadas a opositores ao regime militar antes das eleições de 1970.
O gambito do professor
No começo da década de 1970, aos 22 anos de idade, Pedro Vianna dava aulas de Matemática em um cursinho preparatório para vestibular e na Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi preso pelas forças de repressão por ser cunhado de Leandro Konder, secretário do PCB (Partido Comunista Brasileiro), casado com Cristina, sua irmã mais velha.
Essa prisão, e o modo como Pedro Vianna se desvencilhou dos agentes militares, o levou a pedir asilo na embaixada chilena no Rio no fim de 1970. O jovem aplicou o verdadeiro "gambito da rainha", estratégia utilizada no tabuleiro de xadrez onde o jogador promove drible perante seu adversário.
Pedro convenceu um dos homens que o prenderam no PIC (Pelotão de Investigação Criminal), dentro do 1º Batalhão de Polícia do Exército, no bairro da Tijuca, a soltá-lo com o objetivo de convencer Konder e Cristina a se entregarem.
"Levaram minha mãe para a Polícia do Exército. Eu acompanhei. Fomos direto para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações), na Barão de Mesquita".
Era noite de sexta-feira, 6 de novembro de 1970. O carro com os dois detidos entrou pela portaria da Avenida Maracanã, mais reservada, e não pela Barão de Mesquita. "Colocaram minha mãe numa sala. Eu fui para outro lugar, sem capuz", relata.
Vianna começou a ser interrogado por um homem que se apresentou como Doutor Ferreira. "Durou seis horas, das 21h até 3h da manhã. Depois, fui levado ao PIC". O professor de Matemática, filho de militar, ficou na última sala à direita do corredor principal do prédio, onde funcionava a "sala roxa", ou "boate", pintada com tinta roxa e com jogos de luzes que criavam ambiente medonho.
"Vi um colchão na sala com manchas de sangue. O soldado ao meu lado disse que era sangue do Mário Alves. Lá, também tinha pau de arara, máquina de choque". Mário Alves de Souza Vieira era militante do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) preso e levado ao DOI-Codi, torturado e morto. Seu corpo nunca foi encontrado.
De acordo com o embaixador William Rountree no relatório de 13 de janeiro de 1971, o professor foi preso na Operação Gaiola "porque seu cunhado está envolvido em atividades subversivas".
"Propus que me deixassem sair, para que pudesse convencer minha irmã e meu cunhado a irem sozinhos até a Polícia do Exército. Dr. Ferreira aceitou. Deu prazo até a terça-feira seguinte, 10 de novembro, para cumprir o acordo. Eu queria levar minha mãe embora", fala Vianna, que hoje mora na Europa.
Na segunda-feira seguinte foi recebido na embaixada chilena. Solicitaram que fizesse contato dias depois. Foi combinado que, na ligação telefônica, usaria uma senha: diria que era Pancho. Mas o combinado com os chilenos extrapolava o prazo que os militares haviam definido. Um amigo ligou para a embaixada chilena na sexta-feira, dia 13. Pediram que "Pancho" fosse para lá. Pedro Vianna foi recebido por funcionários, que já o esperavam na calçada.
Agentes federais circulavam pelo local.
Dias depois, um primo do professor de Matemática, que trabalhava no SNI (Serviço Nacional de Informação), mandou recado para ele e para a mãe: "Não era para eu colocar o nariz para fora da embaixada porque estava sendo odiado pelos militares, porque eu os enganei".
As três de Bangu
Os documentos estadunidenses mostram que Rountree acompanhava a situação de outros presos políticos.
Entre 1969 e 1971, Marta Klagsbrunn, Marcia Fiani e Marijane Lisboa foram presas muitas vezes e torturadas no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), na rua da Relação, centro do Rio; no presídio da Ilha das Flores, atual município de São Gonçalo, onde também funcionava o Cenimar (Centro de Informações da Marinha); na prisão da Polícia do Exército, sede do DOI-Codi, zona norte da capital e num local de prisão e tortura que não conseguem identificar.
Permaneceram por mais tempo na penitenciária feminina Talavera Bruce, no complexo de Bangu. O pior momento foi quando foram sequestradas pelo Esquadrão da Morte e militares, após terem obtido liberdade pela Justiça Militar.
A vida dessas três mulheres, ligadas à AP (Ação Popular), foi praticamente destruída antes de conseguirem asilo no Chile. Esse périplo levou os cariocas a conhece-las pelas páginas dos jornais como "as três de Bangu".
Em fevereiro de 1970, o juiz Mário Moreira de Souza, da 1ª Auditoria da Aeronáutica, determinou a transferência das três da Ilha das Flores para o Depósito de Presas São Judas Tadeu, mais conhecido como celas femininas do antigo DOPS. Eram acusadas de atividades subversivas, descritas pela Lei de Segurança Nacional.
"Ficamos em Bangu por mais de um ano. Nosso advogado, Antonio Modesto da Silveira, conseguiu habeas corpus na Justiça Militar. Quando saímos, nosso carro foi perseguido por outro veículo. Fomos sequestradas, encapuzadas e levadas para local imundo, muito sujo", conta Marcia Fiani. "Depois, viemos a saber que era do Esquadrão da Morte", revela Marta Klagsbrunn.
A informação consta nos papeis de Rountree.
"Fomos presas na véspera da eleição de 1970, bastante controlada pelos militares. Prenderam umas 5 mil pessoas só no Rio de Janeiro", conta Marijane. Foi quando surgiu uma colaboração inusitada, que as livrou de novo período atrás das grades e torturas. "Minha mãe (Judith Vieira Lisboa) fazia um curso de pintura em cerâmica. Uma das colegas nas aulas era amante do então secretário de Segurança do Estado da Guanabara. Ela ficou sensibilizada com a situação e conseguiu que ele interviesse. Fomos libertadas", diz Marijane. O secretário de Segurança era o general de Exército Luiz França de Oliveira, já falecido.
Marcia, Marta e Marijane foram aceitas na embaixada do Chile. Para entrar no prédio no bairro do Flamengo, utilizaram disfarces. Montaram personagens: "Marijane se transformou em estudante. A Marta se vestiu de madame da alta sociedade; e eu era a empregada da madame. Tinha até sacolas de compra na mão", relembra Marcia. "Uma colega de minha mãe emprestou perucas. Colocamos espuma dentro da bochecha para parecer gordinhas", fala hoje Marijane, rindo.
A sede da embaixada ocupava um imóvel duplex na rua Barão do Flamengo, 32. "A gente dormia em beliches. Não podíamos sair do quarto durante o expediente", diz Marta. "Era bem difícil, local pequeno para todos. Depois chegou o Pedro Vianna", fala Marcia. Foram praticamente dois meses no duplex aguardando a liberação de salvo conduto pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro.
O sequestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, em 7 de dezembro de 1970, pela Vanguarda Popular Revolucionária, abriu novo flanco de conversas entre os governos brasileiro e chileno. A VPR pedia a libertação de 70 presos políticos para liberar Bucher. Allende utilizou o episódio para solicitar ao governo brasileiro o salvo-conduto dos ativistas que estavam no Rio e em Brasília. Rumaram para Santiago em 14 de janeiro de 1971, 47 dias depois da captura do embaixador suíço, que foi libertado.
"Saímos pela garagem dentro de dois carros. Havia muitos agentes armados, apontando para nós. Eles nos xingavam. Era estarrecedor. Qualquer coisa poderia acontecer naquele momento", recorda Marta. Os carros com as três de Bangu e o professor de Matemática entraram diretamente na Base Aérea do Galeão. Passaram por fortes intimidações. "Por debaixo da cortina, na área onde ficava a tripulação, vi coturnos", lembra Marijane. "O medo era que retirassem a gente do avião. Estávamos sob trauma sem perceber. Mas com muita esperança", observa Marta.
O avião levantou voo e seguiu direto para Santiago.
O asilo no Chile era a única saída segura para os ativistas, explica Cristiane Medianeira Ávila Dias, doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Especialmente após a eleição do candidato socialista, Salvador Allende, para a presidência do país, em setembro de 1970, o Chile tornou-se um 'oásis' de liberdade num Cone Sul, marcado pelo aumento escalonado de violência e perseguição de opositores políticos".
Em 11 de setembro de 1973, um golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet colocaria fim ao governo socialista de Salvador Allende. A ditadura militar chilena durou até 1990.
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