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Deputado diz ter 'combinado' com Onyx extinção de comissão antitabaco

Ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni - ADRIANO MACHADO
Ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni Imagem: ADRIANO MACHADO

Maíra Mathias

De O Joio e O Trigo

15/02/2022 04h00

Ligado aos interesses da indústria do fumo, o deputado federal Marcelo Moraes (PTB-RS) admitiu, em vídeo, ter participado de uma articulação para dar fim à Conicq, a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.

Moraes afirmou ter sido "uma das pessoas que promoveu uma reunião, logo no início do governo, para que houvesse a extinção" da instância governamental que, há 18 anos, tem sido chave para a política de controle do tabagismo no Brasil.

Segundo ele, que é um dos vice-líderes do governo Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, esse "movimento" contou com o auxílio de Onyx Lorenzoni, atual ministro do Trabalho e Previdência. Onyx foi procurado para comentar as declarações de Moraes, por meio da assessoria de comunicação do Ministério do Trabalho e Previdência. A pasta não respondeu até o fechamento da reportagem.

"O Onyx estava na Segov [Secretaria de Governo], tá? E nós lá combinamos, então, a extinção da Conicq - que foi extinta naquele momento", disse Moraes.

O momento ao qual o deputado se refere é 11 de abril de 2019, quando Bolsonaro e Onyx assinaram um decreto (nº 9.759) com a intenção de dar fim a todos os colegiados que, como a Conicq, são ligados à administração pública federal.

Dias depois da publicação do decreto, o presidente retuitou um perfil chamado República de Curitiba, que dizia que a medida acabava com os "sovietes do PT". O próprio Bolsonaro escreveu que o decreto reduziria o "poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades".

Coincidência ou não, Marcelo Moraes afirma no vídeo que levou a Onyx "fotos e evidências do pessoal que estava à frente deste movimento da Conicq agarrado lá com o Jean Wyllys [ex-deputado federal pelo PSOL, hoje no PT], com o movimento do Fora Bolsonaro, esse tipo de coisa".

Ao contrário de outros colegiados, que têm participação da sociedade civil, a Conicq é composta apenas por membros do governo, indicados por ministérios e Anvisa.

Quando o decreto foi editado, Onyx era ministro da Casa Civil, cargo que desempenhou até 14 de fevereiro de 2020.

Ele nunca ocupou a Segov, como Moraes disse. Mas o engano em relação aos cargos de Onyx é compreensível: já foram quatro diferentes desde o início do governo.

"Novamente, o ministro Onyx entrou em ação"

O relato de Moraes dá mostras de que a atuação de Onyx não se restringiu à edição do decreto.

"Houve uma tentativa, um tempo atrás, de recriar a Conicq", disse ele, se referindo ao processo administrativo aberto em maio de 2019 pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão ligado ao Ministério da Saúde que toca o dia a dia da comissão.

"Naquele momento, novamente o ministro Onyx entrou em ação", afirmou Moraes no vídeo.

"O Onyx fez uma movimentação para tentar terminar com essa recriação da Conicq", disse o deputado, reforçando que "Onyx identificou isso e já ligou para quem estava montando isso e, de novo, derrubou a Conicq".

De acordo com detalhes que o próprio deputado deu, essa segunda movimentação teria ocorrido quando Onyx estava na Secretaria-Geral da Presidência da República, comandada por ele entre 12 de fevereiro e 28 de julho de 2021.

Todas essas declarações foram dadas pelo parlamentar em 12 de agosto de 2021, em uma reunião da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, um colegiado ligado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) que é repleto de representantes da indústria do fumo.

O vídeo da reunião foi obtido pelo Joio via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Agente duplo

A atuação de Marcelo Moraes não é a única coisa que chama a atenção nesse vídeo.

Nelson de Andrade Junior, atualmente chefe de gabinete da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Mapa, também aparece tramando contra a Conicq.

Ele se oferece para buscar argumentos para "barrar, boicotar ou, enfim, fazer todo o tipo de ação" contra a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.

Andrade Junior está numa posição privilegiada para tal, já que representa o Mapa na comissão desde abril de 2019.

Em 9 de setembro do ano passado, quase um mês depois dessa reunião, ele assinou um documento da Conicq declarando não ter conflito de interesses, nem ligação com a indústria do fumo.

No documento, obtido pelo Joio via LAI, ele nega ter ou ter tido nos quatro anos anteriores emprego ou outro tipo de relação com entidade envolvida na produção, manufatura, distribuição ou venda de produtos de tabaco.

documento, assinado - Reprodução - Reprodução
Em documento da Conicq assinado em 9 de setembro de 2021, Nelson de Andrade Junior declara não ter conflito de interesses, nem ligação com a indústria do fumo
Imagem: Reprodução
documento, assinado - Reprodução - Reprodução
Em documento da Conicq assinado em 9 de setembro de 2021, Nelson de Andrade Junior declara não ter conflito de interesses, nem ligação com a indústria do fumo
Imagem: Reprodução

A Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, palco das declarações de Moraes e Andrade Junior, é composta por entidades como SindiTabaco e Abifumo, que representam as multinacionais que dominam o ramo, caso de empresas como British American Tobacco (BAT), Philip Morris e Japan Tobacco International (JTI).

Andrade Junior aparece no vídeo lendo para os representantes da indústria um documento em que a Conicq convoca seus membros para uma reunião. "A Conicq está atuando", alerta.

Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) de julho de 2021 chegou à conclusão de que a Conicq não foi extinta pelo decreto nº 9.759 e, portanto, pode seguir funcionando.

De acordo com a AGU, a comissão tem atribuições citadas no decreto que formalizou, em 2006, a adesão do Brasil à Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Esse decreto tem status de lei porque os tratados internacionais são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro desta forma.

Porém, àquela altura, os integrantes da Câmara Setorial do Tabaco não sabiam desse parecer da AGU.

Marcelo Moraes cobrou: "A gente tinha que ter aí por parte de vocês, Nelson, a informação se, primeiro, eles continuam se reunindo de forma não oficial ou se, de fato, o governo os reconhece".

"Deputado, eu acho que está correto", concordou Nelson de Andrade Junior - que, mais tarde na reunião, reforçaria: "Da minha parte ok, deputado. Vou fazer o levantamento das informações todas".

O Ministério da Agricultura foi procurado para comentar a atuação de Andrade Junior, mas não respondeu.

Tratado traz obrigações para o Brasil

Na avaliação de Adriana Carvalho, advogada especializada em litígios contra a indústria do tabaco e diretora jurídica da ONG ACT Promoção da Saúde, a atuação de Moraes e Andrade Junior vai na contramão das obrigações assumidas pelo Brasil diante da Convenção-Quadro.

"Estamos falando de um tratado internacional que foi ratificado pelo país, que assumiu obrigações. A partir daí, o controle do tabagismo se tornou uma política de Estado, não de governo. E quando eu falo Estado, me refiro a todas as esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário", analisa.

Segundo ela, uma das obrigações da Convenção é que cada país tenha uma estrutura de coordenação nacional das políticas de controle do tabaco - que, no caso brasileiro, é a Conicq.

"Então, quando você tem um agente público e um congressista declarando abertamente intenção de atuar contra a Conicq, isso é muito grave. Eles estão agindo em prol de interesses econômicos e não do interesse público."

"É aberto, é parceiro, é muito gente boa"

Marcelo Moraes também propôs uma estratégia para conduzir a posição do Brasil na COP 9, a nona edição da Conferência das Partes da Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde para o Controle do Tabaco que aconteceria dois meses depois da gravação, em novembro de 2021.

A ideia era que uma caravana da indústria do fumo, composta por lobistas e parlamentares, se reunisse com o ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França - que nas palavras de Moraes "é aberto, é parceiro, é muito gente boa" -, com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e também com Onyx Lorenzoni.

"Primeiro, porque [Onyx] está em uma posição estratégica e, segundo, porque é gaúcho, conhece a realidade do tabaco e a importância que tem nas exportações do Rio Grande do Sul", explicou.

Onyx recebeu a comitiva em 25 de agosto. Esse encontro não consta de sua agenda oficial.

Já a costura junto ao Itamaraty e ao Mapa tinha um objetivo: tirar o Ministério da Saúde (MS) da jogada - ou facilitar as coisas para que o ministro da Saúde Marcelo Queiroga atuasse em tabelinha com a indústria do fumo.

"Se a gente for no Ministério da Saúde, o ministério não tem como publicamente dizer que é a favor [da cadeia produtiva do tabaco]... Ele nem pode fazer isso", ponderou Moraes.

"Porém, se a gente fizer um outro caminho e conseguir conversar com o Ministério das Relações Exteriores - com o França - e também com a ministra Tereza Cristina, do Ministério da Agricultura, daqui a pouco a gente começa a fazer um caminho em paralelo e faz com que o Ministério da Saúde não se comprometa, mas, ao mesmo tempo, tome a linha desses outros dois ministérios", expôs o deputado federal.

Para essa bateria de reuniões, Moraes propôs chamar outros parlamentares da bancada do fumo. "Vamos convidar o Alceu [Moreira, MDB-RS], o Heitor Schuch (PSB-RS), o [Luis Carlos] Heinze e vamos dividir tarefas, galera!"

Em 17 de setembro, o senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS) foi recebido pelo chanceler França.

A assessoria do Itamaraty não respondeu ao pedido de comentário da reportagem.

Como o Joio relatou, a estratégia de Marcelo Moraes deu certo até a página 2.

Os técnicos do Inca que atuam na Conicq foram retirados da delegação brasileira da COP 9 pelo Ministério da Saúde a poucas horas do início da conferência.

Fontes relataram ao Joio que a pasta justificou essa decisão argumentando que era preciso 'perder agora para ganhar lá na frente', numa menção implícita à pressão da indústria do fumo.

A costura pretendida por Moraes com o Itamaraty, no entanto, parece não ter dado frutos.

Os diplomatas que lideraram a delegação brasileira seguiram à risca o documento preparado pela Conicq, com orientações sobre posições do Brasil em relação aos temas debatidos na COP 9.

Procurado para comentar, o Ministério da Saúde respondeu que o tema é atribuição do Inca. O Inca, que também havia sido procurado, preferiu não se manifestar.

Moraes tem estreita ligação com indústria

Em 2014, quando ainda era permitido o financiamento empresarial a campanhas, Marcelo Moraes recebeu R$ 27 mil da Philip Morris e R$ 20 mil da Alliance One, que é uma das maiores exportadoras de fumo do mundo. Naquelas eleições, ele foi reeleito deputado estadual no Rio Grande do Sul.

Moraes vem de uma família com longa ficha de serviços prestados à indústria. O mais conhecido do clã é o pai, Sérgio Moraes (PTB-RS), que ao longo de três mandatos na Câmara dos Deputados atuou em defesa das empresas de fumo.

O curral eleitoral da família é a região do Vale do Rio Pardo, onde se concentra a maior parte da produção de tabaco do Brasil.

Marcelo Moraes não respondeu ao pedido de comentário do Joio.