Áudios do STM na ditadura têm confissão sob marteladas e aborto após choque
Os ministros do STM (Superior Tribunal Militar) tinham conhecimento sobre as torturas cometidas no período da ditadura militar no Brasil. O fato é comprovado por áudios gravados nas sessões —tanto as secretas, quanto as públicas —, disponibilizados ao público em 2017, e que vieram à tona no último domingo (17).
Entre as violências que chegaram às mesas dos ministros, há tortura de grávidas, violência contra a mulher, uso de martelos para obter confissões e um sólido entendimento de que as polícias eram violentas com os presos.
As gravações foram divulgadas pela jornalista Miriam Leitão, no jornal O Globo, a partir de análise do historiador Carlos Fico, especialista do período e professor de História do Brasil na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
O UOL separou trechos dos áudios divulgados até agora, que reúnem elementos e detalhes da tortura praticada no período da ditadura militar:
Tortura de grávidas e aborto após choque
Em um dos áudios, o general Rodrigo Octávio descreve denúncias de torturas em instalações militares. Em 24 de junho de 1977, um áudio de 3 minutos e 48 segundos expõe como mulheres grávidas foram violentadas, o que levou até a um aborto.
O general Rodrigo Octávio narra, durante sessão para a apelação 41.048, que José Roberto Monteiro denuncia que fora torturado — e, por isso, negou confissões que havia feito sob aquelas condições — e que o mesmo também aconteceu com sua mulher, Nádia Lúcia do Nascimento.
Na voz do general, descreve-se o que aconteceu com Nádia: "(...) sofreu um aborto no próprio Codi-Doi em virtude de choques elétricos em seu aparelho genital, fato ocorrido no dia 8 de abril de 1974".
A sequência do áudio traz a defesa de Nádia, a partir de uma leitura.
"Não participou de qualquer ação delituosa, nem mesmo estava ligada ao MR8, e que se por acaso for considerada responsável por aquilo que disse, pede que seja tomada em consideração o fato, como salientou, não aguentava mais a pressão à qual fora submetida e até mesmo coação. Deseja ainda esclarecer suas atitudes, pois estava grávida de três meses ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a acontecer no dia 7 de abril nas dependências da Oban [Operação Bandeirante]".
Defesa de vítima na tortura em leitura do general Rodrigo Octávio em 1977
Confissão a marteladas
Os áudios também expõem uma série de detalhes das torturas praticadas. No dia 15 de junho de 1976, o ministro togado Amarílio Lopes Salgado expõe um desses casos. O áudio tem 2 minutos e 33 segundos e trata da apelação 41.027, referente a um assalto a banco. O crime não teve causa política, mas os assaltos do tipo também eram julgados pelo STM de acordo com as regras da época.
O acusado confessa ter assaltado dois bancos, mas destaca que, no assalto em questão, não teve culpa. O ministro afirma que há dois policiais citados pela vítima da tortura, que recebeu marteladas para confessar o crime.
"É o seguinte é que ele alega que para fazer essa confissão na polícia - ele assaltou dois bancos - mas esse ele não podia porque estava preso", diz Lopes Salgado.
Na sequência, o ministro continua: "Faz uma diligência e vê isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital, e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele", explicitando o tipo de tortura.
Sangue pelo nariz, capuz e fome
Em outro áudio, do dia 15 de fevereiro de 1978, o brigadeiro Faber Cintra descreve exemplos de tortura. O áudio de 5 minutos e 47 segundos está no âmbito da apelação 41.648.
Cintra coloca em dúvida alguns relatos de torturados, mas os descreve, apesar de ponderações:
- Ana Maria Mandim, que sofreu coações;
- Sergio (?) Simões, que sofreu muitas "sevícias" (maus-tratos) e coações;
- Antônio Viana Sad, que sangrava pelo nariz "três ou quatro anos" após sair da prisão, em decorrência da tortura;
- Romeiro Passos, que ficou oito dias sem comer na Vila Militar
Cintra lê trecho da sentença que destaca os acusados negando os interrogatórios em juízo por estarem "sob violenta coação". A sentença ainda diz: "[ficaram presos] em locais que não puderam identificar pelo fato de terem sido aquinhoados entre aspas com um capuz na cabeça e assim levados para prestar depoimento".
Tortura praticada por policiais
Trechos dos áudios também expõem que os ministros do STM recebiam denúncias e tinham ciência da violência policial na época. Em um trecho de voz não confirmada, um homem afirma que fica "com um pé atrás" quando o inquérito vem da polícia.
O historiador avalia que o autor da frase pode ser o almirante Sampaio Ferraz em um aparte no voto do ministro togado Amarílio Lopes Salgado, na mesma apelação 41.027 já citada, mas agora no dia 16 de junho de 1976. O áudio tem 1 minuto e 22 segundos.
O homem fala sobre um processo do qual é revisor: "eram quatro indiciados no inquérito, todos eles confessaram direitinho na polícia, que tinham tomado parte, uns acusaram os outros, mas na ocasião do sumário ficou provado que um deles não tinha nada a ver com a história", lembra, indicando que houve coação.
O homem continua, e explica que o acusado disse que ou confessava "ou entrava no pau".
Eles apanham mesmo. Por isso, quando vejo um inquérito na polícia eu fico logo com um pé atrás. Como revisor, eu tomo muito cuidado, examinando isso, porque o que se sente é que na polícia, no Dops, eles entram no pau. Ou confessam ou então apanham. Então não tem valor quase esse inquérito policial, a não ser um inquérito policial militar. Então estou de pleno acordo que é preciso acabar com isso.
Ministro do STM, com identidade não confirmada, em sessão em 1976
Em 13 de outubro de 1976, o ministro togado Waldemar Torres da Costa diz haver precedente na tortura cometida por policiais. Em um áudio de 3 minutos e 50 segundos, na apelação 41.229, ele defende as Forças Armadas, mas se coloca contra as polícias.
Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente.
Ministro togado Waldemar Torres da Costa, em sessão em 1976
O mesmo discurso é proferido pelo almirante Julio de Sá Bierrenbach, em sessão do dia 19 de outubro de 1976. Ele também defende as Forças Armadas, mas corrobora que policiais são "sádicos" para obter confissões.
Senhores ministros, já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes."
Almirante Julio de Sá Bierrenbach, em sessão do dia 19 de outubro de 1976
Defesa do Exército e busca por provas
Ao mesmo tempo em que criticavam as polícias, os ministros defendiam o Exército. Os trechos de áudios mostram que uma das principais críticas era às torturas praticadas por policiais, que poderiam impactar a imagem das Forças Armadas.
Bierrenbach, na sessão do dia 19 de outubro de 1976, continuou sua fala preocupando-se com a imagem do Brasil no exterior:
Essa ação sinistra de poucos é que extravasa além das nossas fronteiras repercutindo no exterior, como se todos nós fôssemos uns infratores dos direitos humanos, sei o que pensa o nosso preclaro presidente da República sobre o assunto. Tenho contatos com os oficiais generais das três forças Armadas que em sua totalidade deploram tais fatos.
Almirante Julio de Sá Bierrenbach, em sessão do dia 19 de outubro de 1976
O ministro togado Waldemar Torres da Costa também expõe a mesma preocupação, e cita que o Exército, sim, apurava crimes "contra a segurança nacional".
Mas eu fico nessa preocupação de atribuir o que constituiria uma desmoralização a prática de tortura por oficiais do Exército que estão apurando crimes contra a segurança nacional. Eu não me recuso a me convencer dessas torturas, mas exijo que essas torturas tragam uma prova e não fiquem apenas no terreno da alegação.
Ministro togado Waldemar Torres da Costa, em sessão em 1976
Na sequência de dúvidas sobre os relatos dos torturados, há ministros que pedem provas sobre os maus-tratos e práticas relatadas pelas vítimas.
As alegações dos acusados em juízo, no sentido de que sofreram coações morais e físicas, não podem ser consideradas, pois desprovidas de qualquer elemento probatório por mais simplório que fosse um laudo médico particular que à época constatasse qualquer lesão, mesmo superficial do acusado."
Brigadeiro Faber Cintra, em sessão do STM em 1978
Também Cintra disse que acusações "desde que procedentes, devem ser apuradas", mas que "simples alegações (...) visam denegrir a prova colhida e afrontar autoridade constituída, pois em última análise trata-se de palavra contra palavra".
O ministro insinua que as alegações de maus tratos, "sem qualquer elemento de convicção", estavam sendo usadas como estratégia primeira de defesa dos acusados, e que acatar tais alegações serviriam de "incentivo" a essa suposta tática.
O que são os áudios?
Os áudios divulgados no último domingo (17), das sessões secretas e públicas, abrangem o período entre 1975 e 1985.
Em entrevista ao UOL News, o historiador Carlos Fico explicou que tem analisado os áudios nos últimos quatro anos, mas que decidiu entregá-los à jornalista Miriam Leitão após o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) duvidar da tortura sofrida por ela no período da ditadura militar.
O material é uma pequena parte das mais de 10 mil horas disponibilizadas pelo STM após uma extensa luta judicial travada pelo advogado Fernando Augusto Fernandes, que obteve no STF (Supremo Tribunal Federal) o direito de ter acesso a todas as gravações do STM entre 1975 e 2004.
- O historiador Carlos Fico foi entrevistado ao vivo pela apresentadora do UOL Fabíola Cidral, no UOL News, sobre os áudios do STM:
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