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Entenda projeto de lei sobre desaparecimento forçado, parado há 4 anos

09.01.2022 - Escavação em vala clandestina em Pedreira, periferia da zona sul de São Paulo - Polícia Técnico-Científica de São Paulo
09.01.2022 - Escavação em vala clandestina em Pedreira, periferia da zona sul de São Paulo Imagem: Polícia Técnico-Científica de São Paulo

Amanda Rossi e Saulo Pereira Guimarães

Do UOL, em São Paulo

15/05/2022 04h00

A ideia de tornar crime o desaparecimento forçado no Brasil voltou à discussão no Congresso Nacional. Só no último mês, o assunto foi tema de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado e houve nova movimentação na tramitação de um projeto de lei que criminaliza este tipo de ocorrência — aprovado em 2013 pelo Senado e parado há quatro anos na Câmara dos Deputados.

As movimentações acontecem após o UOL publicar, no começo de abril, uma série de reportagens que revelou que 201 corpos foram encontrados em 41 valas clandestinas, desde do ano de 2016, nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro.

"A aprovação da lei é necessária dado o incremento da criminalidade, que precisa sentir que o Estado está ciente do problema e de que é preciso combatê-lo", diz a promotora Eliana Vendramini, do MP-SP (Ministério Público de São Paulo). Ela coordena o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos.

Hoje, o código penal brasileiro não prevê o crime de desaparecimento por ação criminosa. Dessa forma, os casos podem ser enquadrados como sequestro, que trata de privação temporária de liberdade. Porém, o desaparecimento forçado é permanente, uma vez que o paradeiro da vítima (ou de seus restos mortais) segue desconhecido.

Enquanto a pena para sequestro varia de um a oito anos de prisão, o projeto de lei que cria o crime de desaparecimento forçado prevê no mínimo seis anos, podendo chegar a 30.

"Esta medida seria um reconhecimento por parte do governo brasileiro de que este problema existe no país e é grave o suficiente para ser caracterizado como crime", diz a advogada Carolina Diniz, do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da organização de defesa dos direitos humanos Conectas.

Desde 2018, o projeto de lei estava parado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, à espera de um relator. No final de abril, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) pediu para ser nomeado para a função. O relator deve elaborar um parecer para ser votado na comissão e, se aprovado, o projeto vai para deliberação no plenário da Câmara.

Na contramão de países latino-americanos

A falta de uma lei que tipifique o crime de desaparecimento forçado coloca o Brasil na contramão de outros países latino-americanos que também apresentam um alto número de ocorrências do tipo. É o caso do México, onde já foram descobertas mais de duas mil valas clandestinas, grande parte relacionada a cartéis de drogas.

Lá, foi aprovada uma legislação em 2017 estabelecendo penas mais duras para esse tipo de crime. São considerados dois casos na lei mexicana: o desaparecimento com participação ou envolvimento de agentes do Estado, e o desaparecimento cometido por particulares — como membros de cartéis.

Na Colômbia, o desaparecimento forçado é crime desde 2000, sendo definido como casos em que "o indivíduo que pertence a um grupo armado fora da lei exige que a outra pessoa seja privada de sua liberdade, seguida de sua ocultação e recusa em dar informações sobre seu paradeiro".

"O desaparecimento forçado implica uma investigação penal sobre os responsáveis, mas também há a obrigação de encontrar o desaparecido. É um crime continuado, até que se estabeleça o paradeiro da pessoa desaparecida", afirma a advogada colombiana Veronica Hinestroza, especialista no tema.

Valas clandestinas em Yecapixtla, na região central do México - Lucía Flores / A dónde van los desaparecidos - Lucía Flores / A dónde van los desaparecidos
Valas clandestinas em Yecapixtla, na região central do México
Imagem: Lucía Flores / A dónde van los desaparecidos

Facções, milícias e agentes do Estado

No Brasil, o projeto de lei aprovado no Senado e em tramitação na Câmara também abarca diferentes circunstâncias de desaparecimento por ação criminosa. O texto cita, especificamente, desaparecimentos promovidos por pessoas "na condição de agente do Estado, de suas instituições ou de grupo armado ou paramilitar".

"O projeto abrange os desaparecimentos relacionados a tráfico e milícia. É claro que uma menção explícita [a tráfico e milícia] seria algo interessante, até pela presença nacional que esses grupos armados têm hoje", diz o sociólogo Fábio Araújo, autor do livro "Das 'técnicas' de fazer desaparecer corpos".

Araújo também diz que "falta [no projeto de lei brasileiro] uma menção mais enfática a valas clandestinas, que são estruturas fundamentais para as dinâmicas de desaparecimento forçado. No México, a luta foi para que o Estado produzisse registro sobre esses espaços. Mas, no Brasil, ainda não temos nada nesse sentido".

Porém, um outro projeto de lei apresentado na Câmara em 2020 propõe tipificar como crime de desaparecimento forçado apenas as ocorrências com envolvimento ou anuência de agentes de Estado. A proposta pode dificultar a punição de situações protagonizadas por tráfico, milícia e outros grupos armados, por exigir a comprovação de que o Estado foi, de alguma forma, complacente.

Além disso, este segundo projeto difere dos textos aprovados por países como México e Colômbia, que adotaram uma definição que abrange desaparecimentos criminosos cometidos por qualquer pessoa. O projeto será avaliado pela Comissão de Constituição e Justiça em conjunto com o já aprovado pelo Senado em 2013.

Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário versam exclusivamente sobre desaparecimentos cometidos por agentes do Estado. Porém, segundo Vendramini, "é preciso harmonizar as convenções internacionais à nossa realidade".

"O desaparecimento com participação de organizações criminosas é uma questão latino-americana e precisa ser abrangido pela lei brasileira", diz a promotora.

Em 2013, Bolsonaro pediu alteração que poupa ditadura

Na Câmara, a primeira fase de tramitação do projeto de lei, ainda em 2013, envolveu Jair Bolsonaro. O então deputado pediu que o texto fosse submetido à análise da Comissão de Direitos Humanos da casa e também solicitou que fosse nomeado relator.

Em seu parecer sobre o projeto, Bolsonaro fez uma única recomendação. O texto previa que o crime de desaparecimento fosse imprescritível, mas, para o então deputado, era preciso acrescentar uma ressalva para casos relacionados à ditadura militar. O motivo era a Lei da Anistia.

Sancionada em 1979, a Lei da Anistia concedeu perdão a quem havia sido enquadrado como criminoso político pela ditadura militar, permitindo o retorno de brasileiros exilados no exterior. Além disso, tem um artigo genérico para proteger agentes da ditadura de punições por crimes políticos - como assassinatos, torturas e até desaparecimentos.

A manifestação de Bolsonaro para poupar a ditadura foi motivada por um ofício do próprio Ministério da Defesa, que representa as Forças Armadas. O órgão estava preocupado que o desaparecimento forçado fosse tornado um crime imprescritível sem ressalvas, colidindo com a Lei da Anistia.

Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes cometidos pela ditadura, 210 militantes políticos desapareceram e não foram encontrados até hoje.

A mudança sugerida por Bolsonaro foi também aprovada pela Comissão de Segurança Pública da Câmara. Para Carolina Diniz, da Conectas, a alteração pode ajudar a passar a lei e a garantir sua aplicabilidade: "Prever a imprescritibilidade dos desaparecimentos forçados na nova lei [sem ressalvar a Lei da Anistia] poderia gerar questionamentos que, posteriormente, a invalidariam."