Com milhões passando fome, verba de merenda fica parada em prefeituras
Depois de dois anos estudando de casa por causa da pandemia, as filhas do serralheiro Dionísio Vieira, de Franca (SP), aguardavam o momento de voltar à escola. Só não imaginavam que a merenda servida seria apenas pão — recheado, a depender do dia, com frango ou presunto.
"Quando a prefeitura oferece pão no lugar do almoço o que ela quer dizer para uma criança? Isso não é almoço, é um lanche de péssima qualidade", diz o pai das meninas. A justificativa dada pela prefeitura foi a falta de merendeira, mas, mesmo depois que as funcionárias foram contratadas, os alunos ainda recebem de merenda pão em pelo menos um dia da semana.
Em contrapartida, Franca tinha R$ 489 mil no caixa em abril deste ano para usar com a merenda escolar (dado mais recente disponível). Em dezembro de 2021, eram mais de R$ 2,2 milhões. O dinheiro foi transferido pelo FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação), órgão ligado ao Ministério da Educação, para ser usado no âmbito do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar).
A situação do município não é um caso isolado. Dados do fundo, analisados pelo UOL, mostram um valor de R$ 1,8 bilhão parado na conta de cidades e estados brasileiros em dezembro de 2021. Em abril deste ano, os cofres acumulavam R$ 1,7 bilhão. A verba deveria ser usada para alimentação escolar.
"A não execução desses recursos se enquadra como violação ao direito humano à alimentação, sobretudo em um contexto de aumento da fome", afirma Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar.
O número de pessoas em insegurança alimentar grave no Brasil quase duplicou em menos de dois anos. São 33,1 milhões de brasileiros que hoje passam fome (15,5% da população), segundo a pesquisa Vigisan (Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil).
A má gestão do dinheiro público e a falta de conhecimento técnico não são os únicos motivos para a verba da merenda ficar parada nas contas bancárias das prefeituras, na avaliação de Mariana. "O recurso repassado pelo governo é insuficiente, embora os municípios também tenham responsabilidade", diz.
O baixo valor repassado pelo Executivo também é apontado por gestores municipais como uma das dificuldades para se usar o dinheiro de forma isonômica, ou seja, seguindo uma divisão igualitária entre todos os alunos da rede municipal, conforme prevê a regra.
Uma pesquisa feita pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios), obtida com exclusividade pelo UOL, mostra que a principal razão para não utilização integral dos recursos recebidos em 2021 foi a pandemia de covid. O levantamento foi feito com municípios de baixo IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) e com saldo na conta do Pnae.
O governo federal adiantou repasses para a compra de merenda durante a pandemia, e o estoque de saldo mais que triplicou nos exercícios de 2020 e 2021 — quando comparado ao valor do saldo existente em dezembro de 2019, que era de R$ 671,25 milhões, segundo o FNDE.
Não houve bom aproveitamento dos recursos por falta de capacidade técnica e também porque, mesmo com o aumento do repasse, o valor era insuficiente para cidades com baixa arrecadação.
"Mais uma demonstração da incompetência e má gestão do FNDE. É papel [do fundo] dar assistência técnica para que esse recurso não fique represado. Principalmente nas cidades menores, que não têm a condição, às vezes, nem de saber que esse dinheiro está à disposição", afirma o deputado Kim Kataguiri (União-SP), presidente da Comissão de Educação da Câmara.
Segundo o fundo, cada município define seu planejamento de compra e o respectivo cronograma de desembolso para pagamento dos fornecedores.
"Isso ocorreu, principalmente, devido à suspensão das aulas presenciais no país em razão da covid-19", diz o FNDE. O fundo afirma ainda que envia ofícios para todos os estados e municípios informando sobre os saldos e valores, tanto das contas ativas como das inativas.
O FNDE está no centro das suspeitas de corrupção do Ministério da Educação, que levaram à demissão de Milton Ribeiro da pasta em março —após denúncias de privilegiar pastores num esquema de distribuição de verbas.
Kit merenda no Pará
"Nós temos aqui 9,5 mil alunos. Um kit de alimentação razoável com sete, oito itens (arroz, feijão, açúcar, leite, bolacha, até frango) estava custando em torno de R$ 70. Ao todo, dá quase R$ 700 mil e a gente recebia em torno de R$ 85 mil ou R$ 90 mil do FNDE por mês", disse. "Esse repasse é insuficiente para dar merenda. Recebemos R$ 90 mil e isso dá oito dias letivos por mês", diz.
A cidade tinha em abril deste ano um saldo em conta de R$ 769 mil que poderia ser usado para elaboração da merenda. Para usar o dinheiro, o município precisa seguir as regras do programa, por exemplo:
- ter cardápio nutricional para manter a boa qualidade na alimentação dos alunos;
- adquirir ao menos 30% da agricultura familiar.
Para o presidente do CNM, Paulo Ziulkoski, municípios menores têm mais dificuldades de atenderem às exigências para o uso da verba. "Eles [Executivo] dificultam tanto que é para não pagar", relata.
Pão e sem cardápio diferenciado
Para o serralheiro Dionísio, a Prefeitura de Franca deveria investir na agricultura familiar —um dos pilares incentivados pelo Pnae. "Não dá para dizer que a merenda não é uma questão social, porque ela é. Tem criança que vai para escola comer. A prefeitura não pode achar normal servir pão", diz.
No início do ano, com a falta de profissionais para fazer a merenda, o município fechou uma licitação de R$ 5 milhões para lanches frios (pães com frango ou presunto). Em documento do Conselho de Alimentação Escolar da cidade, o órgão informa que recebeu relatos de crianças desnutridas.
"Parte dos alunos não gostou dos alimentos fornecidos e vários deles deixaram de comer, havendo grande desperdício de alimentos", diz documento.
Uma aluna, por exemplo, é alérgica e não recebe substituição dos alimentos que não pode comer. Desde 2014, uma lei prevê que a escola deve oferecer um cardápio especial para esses estudantes.
Como a legislação não tem sido cumprida na cidade, a mãe da menina, que pediu para não ter o nome revelado, recebe da escola o cardápio da semana e se organiza para enviar as substituições para a filha. "A escola não tem culpa, a prefeitura que não tem feito o trabalho direito", desabafa.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Franca informou que o planejamento financeiro é para todo o ano letivo.
O município disse ainda que verificou no final do primeiro semestre que o repasse feito pelo governo federal não seria suficiente, fez um remanejamento de R$ 1,5 milhão e aprovou projeto de R$ 4,5 milhões. A prefeitura, no entanto, não respondeu sobre o valor não utilizado em dezembro do ano passado.
A gestão municipal negou que não haja diversificação nos alimentos oferecidos aos alunos e afirmou que conta com mais de 30% da agricultura familiar. Sobre os lanches, disse que foram oferecidos devido à falta de profissionais, mas que o produto atendeu "os valores de macronutrientes".
Sem conselho de alimentação
Em Itaboraí (RJ), apesar do caixa para merenda ter mais de R$ 1,2 milhão parado, as escolas municipais têm servido ovo na merenda aos estudantes. Nas poucas vezes em que a carne é oferecida, as merendeiras são orientadas a colocar pequenas porções nos pratos.
Os relatos foram feitos por mães de alunos e pelo Sindicato de Profissionais da Educação. Mariana* é mãe de três filhos e afirmou à reportagem que a qualidade da alimentação escolar é péssima.
Os alunos comem, porque a gente vê as fragilidades que as crianças estão passando. A merenda é um importante recurso de nutrição, principalmente nas camadas mais empobrecidas."
Amanda Rodrigues, professora em Itaboraí e coordenadora-geral do sindicato
Assim como em Franca, há relatos de pouco incentivo da agricultura familiar em Itaboraí. "Esse ano estamos melhores, porque a regularidade existe, o que não existe é uma merenda de qualidade", conta Amanda.
Antes da pandemia, o Conselho de Alimentação Escolar, representado por diferentes integrantes, analisava a qualidade da comida oferecida nas escolas. No ano passado, no entanto, o órgão não recebeu mais nenhum representante do sindicato e a categoria não tem informação sobre como as vistorias têm sido feitas.
"A gente visitava quinzenalmente as escolas, analisava tudo, fazia relatório, abria as geladeiras e coletava todas as informações", relembra Júlio César Santos, coordenador-geral do sindicato.
Ele era um dos representantes no conselho e contou que o sindicato solicitou à Secretaria de Educação informações sobre a merenda. A pasta enviou algumas fotos, mas Julio garante que ao conversar com funcionários a realidade relatada é outra.
Em 2021, a cidade fechou o caixa da merenda com R$ 651 mil. Ao longo do ano, no entanto, a oferta de cestas básicas não chegou para todos os alunos.
Segundo Amanda, a prefeitura não comprou a quantidade suficiente e houve registro de furto dos alimentos nas escolas.
"Fomos limados do conselho de alimentação, não temos acesso aos dados da merenda, por exemplo. Infelizmente, a alimentação escolar é um campo minado, porque envolve fornecedores, empresariado local", aponta a professora.
O UOL procurou a Prefeitura de Itaboraí, mas não obteve resposta.
Merenda enlatada
Uma investigação feita no ano passado pelo TCM-PA (Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará) nos municípios da Ilha do Marajó identificou problemas na distribuição da merenda em Melgaço. "Elaboração de um cardápio de baixo valor nutricional para a zona rural com priorização na oferta de produtos industrializados e processados", diz o texto.
"Uma situação [excesso de produtos industrializados] que vai induzir a um comprometimento da saúde desses alunos", afirma a presidente do TCM-PA, Mara Lúcia. Segundo ela, o dinheiro é insuficiente para compra de um alimento melhor e falta orientação sobre como o recurso pode ser usado de forma mais efetiva pelos municípios.
O relatório também identificou problemas na alimentação escolar da cidade de Chaves, na ilha. "Recursos financeiros insuficientes para aquisição de gêneros alimentícios que assegurem o cumprimento dos 22 dias de fornecimento de alimentação escolar", informa o documento.
Chaves contava com um saldo em abril de R$ 332.996,06 para a compra de merenda escolar, o equivalente ao que a cidade recebe em quatro meses pelo programa. Parte desse valor estava bloqueado porque a gestão anterior não prestou contas ao MEC (Ministério da Educação), segundo a secretária municipal de Educação, Delzirene de Brito Abdon Pantoja.
"Já foi publicado edital, feito chamada pública, então, em agosto, vamos usar esse recurso que tem em conta e o restante será usado para comprar a merenda dos meses restantes", garante a secretária.
Burocracia
A pesquisa da CNM mostra ainda que os municípios enfrentam entraves burocráticos para usar o dinheiro, como o tempo para os processos licitatórios. Outra razão é a falta de assistência técnica do FNDE e interação com os executores do Pnae.
Para a Confederação dos Municípios, as normas do programa federal foram "intempestivas". O grupo afirma ainda que as dificuldades dos gestores foram ampliadas dentro de um período como a pandemia da covid-19.
Muitos municípios, segundo a confederação, optaram por utilizar recursos próprios para garantir a alimentação das famílias, em razão das exigências impostas pelo FNDE. Essas regras, de acordo com o grupo, tem dificultado a prestação de contas dos recursos recebidos à conta do programa federal.
"Precisa dar mais autonomia aos municípios", defende o presidente do CNM.
Em resposta às críticas dos municípios, o FNDE disse que assessorou as prefeituras. "[O fundo] manteve as atividades de assessoria, monitoramento e formação de atores nos anos de 2020 e 2021, mesmo durante a suspensão das aulas presenciais, tais como formação de conselheiros da alimentação escolar e nutricionistas."
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