Ele é um jovem brilhante e tem uma capacidade de falar em público incomum; faz citações contextualizadas e com charme; evolui seu pensamento de maneira concatenada e com uma voz aveludada que envolve. Bem-humorado, mesmo a vida tendo sido madrasta muitas vezes.
Preso injustamente, perseguido, recebeu dois tiros de forma covarde em abordagens policiais agressivas e ilegais. É mestre em Direito. Tem uma coragem ímpar e um ar de deboche que surpreende os mais formais, mas procura sempre fundamentar seus inconformismos e suas indagações. Uma mente livre no meio de um deserto de ideias. Um susto para uma burguesia retrógrada.
Conseguiu, como que por milagre, eleger-se vereador. Com um discurso coerente e até certo ponto atrevido, ocupou espaço político em uma Câmara tradicional. Fez o contraponto que lhe cabia fazer com dignidade e independência. Como todo cidadão que exige o cumprimento dos direitos e garantias constitucionais numa sociedade conservadora e atrasada, teve uma contestação muito além do razoável. Na falta do diálogo, usaram a força como maneira de censurar suas posições.
Em uma de suas manifestações pró-vida, no exercício legítimo de seu mandato, ele participou de um ato contra a morte covarde de dois cidadãos negros. Como ele, milhares de pessoas fizeram. Deveriam ser milhões, afinal, eles são os principais alvos da violência no Brasil. Não só da violência policial, mas especialmente dessa violência.
O número de negros que sofrem humilhações, abordagens ilegítimas, violência gratuita e espancamentos é algo que deveria constranger uma sociedade dita civilizada. Sem contar as milhares de prisões ilegais, arbitrárias e cruéis. O homem negro é a vítima principal dessa sociedade racista e supremacista.
E o pior é que uma elite branca que vive longe da realidade do dia a dia dos negros ainda se julga no direito de arrotar normas e falar em nome deles. Como se eles precisassem de autorização dos brancos para expor seus direitos e suas mazelas!
Pois esse vereador, na manifestação contra o assassinato de dois negros, entrou com um grupo de manifestantes numa igreja após o término da missa. Sem violência e sem agressão. A capela estava de portas abertas e, presume-se, é um local de recolhimento. O padre, que havia terminado de celebrar a cerimônia, não protestou. O arcebispo, depois consultado, não viu maior gravidade na manifestação. E, pasmem, esse vereador vai ser recebido em setembro pelo santo padre, o Papa Francisco, em Assis.
Mas os donos da Câmara de Vereadores resolveram criar um mote para afastá-lo da Casa e do convívio; ele, que soava exótico, pois não era igual aos que se sentem superiores. E em uma inominável covardia e ousadia resolveram instaurar um processo de cassação do mandato por falta de decoro.
Na realidade, tecnicamente falando, quem faltou com o decoro foi quem usou a estrutura da Câmara para perseguir e cassar um político sério e comprometido com a causa popular, com os pobres e com os negros. Só conseguiram fazer isso por conta da discriminação racial estruturada e perversa que corrói o método de viver, mesmo de quem não se apresenta como preconceituoso. Na verdade, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.
O irônico é que a igreja em questão é a Igreja do Rosário dos Negros: construída pelos negros para acolher a raça negra. Mas vivemos tempos de horror, mesmo os atos de solidariedade podem servir para ferir. E, no caso concreto, por um requinte de crueldade, o ato de amor e de indignação deu ensejo a uma cassação cruel e mesquinha do mandato do vereador.
O prefeito da cidade, assumidamente religioso, fez olhos de quem não quis ver; logo ele que, com sua força, poderia mandar parar o massacre. O Deus dele é outro e é cego.
Cassaram o mandato do vereador e os seus direitos políticos por 10 anos. Uma verdadeira morte civil. Tiraram de dentro da Câmara, do convívio diário, aquela pessoa que incomodava e não seguia os padrões daquela elite da cidade. Ele não se adestrava e não aceitava o cabresto.
A cassação foi a resposta fácil para quem se atreveu a não seguir a cartilha. Uma Câmara de Vereadores cassou um vereador por uma manifestação política. Coroou o princípio de criminalizar a política. A própria política se criminalizando. Bizarro.
Ah, esqueci de registrar: o vereador é negro e a cidade é Curitiba. Ele se chama Renato Freitas, vocês ainda vão ouvir falar dele.
Como o curitibano Paulo Leminski:
"Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz."
Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) é advogado criminalista. Ele atuou na defesa do vereador Renato Freitas (PT), cassado pela segunda vez, ontem, por quebra de decoro parlamentar na Câmara Municipal de Curitiba.
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