'Sou um filho da ditadura': branco e idoso, ato lota Largo de São Francisco
Enquanto juristas, políticos, artistas e estudantes de direito lotaram a Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo, para ouvir a leitura de cartas em defesa da democracia na manhã de hoje, uma multidão do lado de fora tomou o tradicional Largo de São Francisco, onde jovens de movimentos sociais perderam o protagonismo para uma plateia composta principalmente por brancos mais velhos, que viveram a ditadura militar no Brasil.
Os primeiros manifestantes começaram a aparecer às 9h, mas foi apenas por volta das 11h que a rua ficou tomada por bandeiras de centrais sindicais e movimentos sociais, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).
A maioria dos presentes sem vínculos institucionais, no entanto, tinha os cabelos brancos e estava ali porque não queria voltar ao período de exceção no país, entre 1964 e 1985.
"Um filho da ditadura"
O advogado Eduardo Bueno, 68, decidiu acordar cedo e se juntar aos manifestantes apesar do frio e da chuva que tomavam a região da Sé na manhã de hoje.
"Estamos correndo muito risco de voltar à ditadura", afirmou. "A população tem de sair à rua para demonstrar de que lado está. Eu, com a minha idade, estou aqui, enfrentando sol e chuva para que as gerações futuras não passem pelo que passamos."
Sou um filho da ditadura. [No passado] nos foi tirado o direito ao voto e à democracia. Por mais que eu erre na minha escolha, quero voltar [à urna] e tentar novamente"
Eduardo Bueno, advogado
"Quero a bandeira de volta"
A aposentada Norma de Andrade, 64, foi ao ato pela democracia empunhando a bandeira do Brasil, cada vez mais associada à direita bolsonarista.
"Trouxe porque a bandeira é um símbolo, e a simbologia diz muito", disse. "Mas não adianta ter símbolo sem ações, e o estado de direito está ameaçado agora. É por isso que vim aqui dar apoio à carta e às instituições que garantem a democracia."
Aposentada, Eliana Souto Tortma, 71, também defendeu o "resgate da bandeira" e que os "patriotas" que desejam que o Brasil melhore "precisam participar desse tipo de manifestação, seja contra a ditadura ou qualquer discurso de ódio".
"Eu gosto da bandeira e quero ela de volta!", afirmou. "Não foi uma coisa banal. Eu sou de 1951, e peguei a ditadura numa cidade pequena no Rio Grande do Sul, mesmo sem muito acesso à informação. Eu vi pessoas sendo presas e torturadas."
A também aposentada Maria Mendes, 75, se encolhia do frio enquanto aguardava a leitura das cartas pela democracia em frente à faculdade.
"Vim pela democracia", afirmou, ao relembra o período militar. "Perdemos muitos amigos naquele tempo. De alguns não temos notícia até hoje."
Ela aproveitou para criticar os ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) às urnas eletrônicas.
"A urna eletrônica vem garantindo a eleição dele por anos. Ele é presidente através do voto e agora está reclamando?"
Poucos negros
Além de composto por um público que viveu a ditadura, os manifestantes que lotaram o largo também eram majoritariamente brancos. Um dos poucos negros ali presentes era o professor Ricardo Marcolino Pinto, 55, que comentou a falta dessa representatividade no ato.
"Historicamente tem sido isso: os negros têm menos oportunidades de participar de eventos e atividades porque o emprego, a sobrevivência fala mais alto", disse. "Mas é outra coisa que estamos começando reverter: tem a lei de cotas que precisa continuar por pelo menos 50 anos, até conseguirmos equidade de fato na sociedade brasileira. Os negros são a maioria, e vamos ocupar o nosso espaço."
Ele também comentou o fato de a maioria dos jovens no ato estarem ligados ao movimento estudantil, como a Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo).
Nós, que vivemos a ditadura, estamos aqui porque não queremos a volta dela. Os jovens não viveram essa experiência, nós vivemos"
Ricardo Marcolino Pinto, professor
"Acredito que os jovens estão chegando, eles estão começando a tomar consciência. A televisão está ficando menos importante e os livros estão começando a chegar", completou.
Embora o largo tenha ficado lotado durante a leitura das cartas, a Polícia Militar não divulgou o número de manifestantes porque "a PM não faz contagem de manifestações há muitos anos", afirmou ao UOL a assessoria de imprensa.
Manifestação petista?
Já os movimentos sociais, composto por pessoas mais jovens, tentaram entoar gritos pró-Lula: Enquanto havia depoimentos, discursos e leitura das cartas do lado de dentro da faculdade, um grupo de manifestantes do MTST tentou puxar gritos em favor de Lula do lado de fora. Mas a ideia não pegou.
Empunhando bandeiras do movimento, eles entoaram "Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula", mas o grito ficou restrito ao grupo. Pouco depois, emendaram um "fora Bolsonaro" — aí sim com adesão de mais gente.
No fim do evento, entretanto, os gritos pró-Lula e contra Bolsonaro foram aceitos e entoados por quem estava na rua.
O advogado Raphael Maia, 47, reforçou o fato de se tratar de um "movimento suprapartidário".
"Estamos a 60 dias de uma eleição polarizada, e um dos lados é golpista", disse. "O outro lado se identifica com o Lula, mas com certeza tem gente aqui que não vai votar nele, mas não tolera o discurso armamentista e de golpe."
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