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Uerj mudou regra para ocultar contratações com remuneração de até R$ 32 mil

Entrada do campus da Uerj, no Maracanã: universidade contratou bolsistas sem processo público de seleção - Bruna Prado/UOL
Entrada do campus da Uerj, no Maracanã: universidade contratou bolsistas sem processo público de seleção Imagem: Bruna Prado/UOL

Do UOL, no Rio

12/09/2022 04h00

A Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) modificou norma interna para permitir contratações sem transparência, com remuneração de até R$ 32 mil em um só mês. Entre elas, a reportagem identificou até um condenado por porte ilegal de arma.

O UOL —que já revelou que o governo do RJ lançou mão de folhas de pagamento secretas para empregar aliados políticos em projetos na Uerj— agora mostra como foram viabilizadas essas contratações sem processo seletivo público e a dimensão desses gastos: em apenas um dos programas (o Observatório Social do Segurança Presente), foram pagos a esses contratados R$ 8,3 milhões entre junho e dezembro do ano passado.

Após denúncia do UOL, o TCE-RJ (Tribunal de Contas do Estado do RJ) abriu neste mês um processo para apurar irregularidades nesse programa.

O que a reitoria da Uerj mudou. Em abril de 2021, foi publicado um conjunto de normas pela própria reitoria —chamado Aeda (Ato Executivo de Decisão Administrativa)—, com regras para a contratação de pessoas para projetos na universidade.

A primeira versão do documento afirmava que a escolha dos candidatos deveria ser "precedida de processo seletivo simplificado, com prévia e ampla publicidade no site da Uerj".

Mas o texto foi mudado no mês seguinte para incluir a frase: "salvo os integrantes do núcleo estruturante". Isso abriu uma brecha para que pessoas que integram esse grupo, com as remunerações mais altas, fossem contratadas sem transparência.

Procurada, a Uerj disse que os profissionais dos núcleos estruturantes realizam atividades "estratégicas/gerenciais" e são responsáveis "por garantir o atingimento dos objetivos propostos, a qualidade e a correção das entregas, configurando, assim, tarefas com grau elevado de responsabilidade".

"Por essa razão, passam por uma seleção não necessariamente via edital, mas sim por meio de outras modalidades, como análise de currículo e entrevista, critérios legalmente permitidos à Administração Pública para o preenchimento, por exemplo, de cargos em comissão", afirma a universidade, em nota.

No caso do Observatório Social do Segurança Presente —projeto da gestão Cláudio Castro (PL) voltado para analisar o programa de patrulhamento em bairros da capital e de outros municípios—, o UOL identificou no núcleo estruturante ao menos 55 integrantes —cerca de um terço dos 157 contratados em dezembro— com passagens recentes por cargos comissionados em órgãos públicos do RJ ou ligações com políticos.

A Uerj pagou R$ 3,2 milhões a esse grupo de 55 contratados sem processo seletivo público apenas em 2021.

Entre junho e dezembro, a folha de pagamento do núcleo estruturante desse projeto teve entre 64 e 157 pessoas por mês, com gasto total de R$ 8,3 milhões.

Forma de contratação e remunerações. Apesar de exercerem, segundo a própria Uerj, atividades gerenciais, os integrantes do núcleo estruturante foram contratados pela universidade como bolsistas —pesquisadores ou consultores—, mesmo sem necessariamente terem qualquer experiência acadêmica.

Recebendo como bolsistas, os profissionais driblam proibição constitucional, que não permite que servidores acumulem cargos públicos, com raras exceções, como professores e profissionais de saúde.

No Observatório Social do Segurança Presente, as remunerações mensais desse grupo variaram de R$ 4.000 a R$ 32 mil no ano passado. A média foi de cerca de R$ 10 mil.

O valor médio recebido por esse núcleo supera em três vezes os R$ 2.875 pagos por mês a bolsistas de doutorado pela Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio).

Uerj não deixa claro critério para remunerações. Não há documentos públicos que esclareçam como a universidade definiu as remunerações.

A reitoria da Uerj alegou, em nota, que "um dos parâmetros adotados para a definição da remuneração é o padrão dos cargos em comissão do Estado do Rio de Janeiro, sendo aqueles de maiores responsabilidades ou jornadas mais extensas, evidentemente, mais altos".

Apesar de a universidade usar como parâmetro cargos em comissão, as pessoas foram contratadas como bolsistas sem terem, por exemplo, carga horária definida.

Os cargos em comissão exigem dedicação exclusiva e precisam ter as nomeações e exonerações publicadas em Diário Oficial, o que não aconteceu nesses núcleos.

Mais transparência sobre selecionados com salários menores. No Observatório, foram contratados cerca de mil extensionistas para trabalho de pesquisa em campo, com remunerações menores, de R$ 3.400 em média.

Nesses casos, houve ao menos a publicação de uma convocação pública e do resultado no site da universidade de uma seleção simplificada, baseada em análise de currículo.

Nenhuma folha de pagamento, no entanto, foi divulgada pela Uerj.

A universidade informou que vem consolidando as informações em um site de transparência atualizado diariamente (veja aqui a página). Até a publicação desta reportagem, não havia tabelas de remunerações consolidadas, mas um sistema de buscas que mostra um valor a partir da digitação exata de um nome, sem especificar a que mês se refere.

O UOL mostrou no mês passado que o governo do Rio transferiu este ano mais de R$ 593 milhões para 18 projetos da Uerj cujas folhas de pagamento não são públicas. A reportagem localizou algumas, apenas do ano passado, em um processo atualmente em sigilo.

Quem integra o núcleo estruturante. Entre os contratados sem processo seletivo público estão:

Condenado e contratado: O ex-funcionário da Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes Matheus do Rosário Costa foi condenado em novembro a três anos de prisão pela 1ª Vara Criminal da cidade por porte ilegal de arma.

Ele foi flagrado com um revólver com a numeração raspada em sua casa em março do ano passado, quando ficou preso por cerca de duas semanas. A pena foi convertida em prestação de serviços comunitários. Em 2018, Costa fora detido pelo mesmo motivo.

No mês seguinte à condenação, Costa figurou na lista de bolsistas do Observatório Social do Segurança Presente, com remuneração de R$ 5.000.

O processo seletivo simplificado da Uerj —ao qual Costa não foi submetido— prevê que os candidatos assinem um termo dizendo não estar respondendo ou não ter respondido a processo criminal.

O UOL entrou em contato com Costa por meio de WhatsApp, mas não houve retorno.

Irmão de padrinho político de Castro: Frederico Augusto Cruz Pacheco recebeu um total de R$ 96 mil do projeto. Ele é irmão do conselheiro do TCE-RJ (Tribunal de Contas do Estado do RJ) e ex-deputado estadual Márcio Pacheco.

O ex-parlamentar é o padrinho político de Cláudio Castro e, até hoje, um dos aliados mais próximos dele. Por anos, Castro foi chefe de gabinete de Pacheco na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Também foi Pacheco o artífice de sua eleição como vereador do Rio, em 2016.

Frederico Pacheco recebeu remuneração mensal de R$ 16 mil entre julho e dezembro de 2021.
Em novembro e dezembro, ele acumulou a atuação no projeto com um cargo de assessor na Secretaria Estadual de Cidades. A partir de janeiro, assumiu uma função ainda mais importante no governo: a de vice-presidente do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), na qual permaneceu até 31 de março.

Em nota, Frederico Pacheco afirmou ter sido contratado por meio de processo seletivo simplificado. Sobre o acúmulo de funções, ele justificou: "Como prestador de serviço, sem vínculo, não há medição de carga horária, mas tarefas executadas". Ele diz ter se desligado do projeto "cumprindo todos os protocolos exigidos".

José Luiz do Posto: Em suas redes sociais, o ex-vereador de Mangaratiba (RJ) José Luiz Figueiredo Freijanes, conhecido como o José Luiz do Posto, exibe dezenas de fotos e postagens de apoio ao governador e ao líder do governo Castro na Alerj, deputado Rodrigo Bacellar (PL).

Entre julho e dezembro do ano passado, ele figurou como bolsista do Observatório Social do Segurança Presente com remuneração mensal de R$ 16 mil.

Ao UOL, José Luiz afirmou que deixou o projeto há cerca de dois meses.

O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), com o ex-vereador José Luiz do Posto durante evento de divulgação de projeto esportivo da Ceperj - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), com o ex-vereador José Luiz do Posto durante evento de divulgação de projeto esportivo da Ceperj
Imagem: Reprodução/Facebook

Em fotos no Facebook, o ex-vereador aparece neste ano em inaugurações de obras da gestão Castro e divulgando projetos da Fundação Ceperj —que está no centro do escândalo dos cargos secretos— com um uniforme da Secretaria Estadual de Governo.

Apesar de isso não ter nada a ver com seu trabalho como bolsista da Uerj, José Luiz do Posto disse que não fez nada sem a autorização da Uerj.

Perguntado sobre a carga horária na universidade, o ex-vereador não especificou o tempo de trabalho, mas disse que cumpriu todas as funções a ele designadas.

José Luiz também negou que tenha virado bolsista por indicação política e afirmou que a contratação nada tem a ver com o apoio a Castro e Bacellar.

Servidores de Belford Roxo: "Eu?", questionou Vilmar Tavares dos Santos, ex-funcionário comissionado da Prefeitura de Belford Roxo, ao ser perguntado pelo UOL por telefone sobre ser bolsista da Uerj.

Ele apareceu na folha de pagamento de dezembro com remuneração de R$ 30 mil. Ao mesmo tempo, recebia R$ 3.200 como secretário executivo no município da Baixada Fluminense.

Vilmar já foi tesoureiro do PROS no Rio e teve passagens pelos gabinetes da deputada federal Clarissa Garotinho (União Brasil-RJ) e do deputado estadual Giovani Ratinho (Solidariedade).
Após desligar o telefone, ele não respondeu a mensagens da reportagem perguntando sobre suas funções na universidade.

Além dele, o UOL detectou ao menos outros cinco casos de pessoas que eram funcionárias da Prefeitura de Belford Roxo e também bolsistas da Uerj.

Um deles é Thiago Neves, assessor especial de serviços do município, que recebeu R$ 32 mil da universidade em dezembro. Na cidade, ele tem salário de R$ 1.212.

A reportagem não conseguiu contato com Neves. O espaço segue aberto a manifestações. A prefeitura disse não ter ciência dos casos.

A universidade confirmou que "cinco servidores da prefeitura de Belford Roxo integram o núcleo estruturante da Uerj no projeto Observatório Social da Operação Segurança Presente e foram selecionados por suas qualificações (como ex-procurador geral, advogados com pós-graduação, professora etc)".

"Os cinco profissionais são servidores, submetidos e aprovados em concursos públicos, não são filiados a partidos políticos nem candidatos a cargos eletivos", completou a universidade.

A assessoria de imprensa do governo do RJ afirmou que "Matheus do Rosário Costa, José Luiz Figueiredo Freijanes e Frederico Augusto Cruz Pacheco atuaram no apoio institucional em estudos técnicos do Observatório de Segurança Presente e no treinamento de qualidade, atendimento e motivação dos agentes".