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Até guru espiritual de filha de Jefferson foi pago com propina, diz delator

Do UOL, no Rio

29/10/2022 04h00

Em depoimento prestado em julho ao MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro), ao qual o UOL teve acesso, o delator Marcus Vinícius Azevedo da Silva —empresário e ex-funcionário da prefeitura carioca— deu novos detalhes sobre suposto recebimento de propina pela ex-deputada federal Cristiane Brasil (PTB-SP), filha do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

Marcus Vinícius, que trabalhou entre 2011 e 2014 com Cristiane na Secretaria Municipal de Envelhecimento Saudável, afirmou que os recursos ilícitos —desviados de projetos sociais— teriam bancado até pagamentos para o "guru espiritual" da ex-deputada. O depoimento reforça investigações do MP-RJ, que apontaram recebimento de propina por Cristiane "com percentuais entre 5% e 20%, variando em decorrência do valor contratual".

Agora na linha de frente da defesa de seu pai —Jefferson foi preso no domingo (23) pela Polícia Federal—, Cristiane responde em liberdade a processo criminal decorrente da Operação Catarata, do MP-RJ. A ex-deputada, que é acusada de corrupção ativa e de integrar organização criminosa, chegou a ficar presa entre setembro e outubro de 2020.

Em nota, a ex-deputada disse que "o inquérito policial sobre o caso foi exclusivamente montado a partir da 'delação' de dois réus; inclusive a minha prisão preventiva foi declarada também sem nenhuma outra prova, o que já enseja a nulidade do caso, pois após dois anos de investigação eles não apresentaram nenhuma outra prova".

Cristiane —que cumpriu mandato na Câmara pelo RJ, mas nesta eleição tentou sem sucesso se reeleger por SP— também afirmou ao UOL que provará sua inocência e irá processar "o promotor e a juíza que me prejudicaram, bem como a todos os meios de comunicação que assim procederem".

Marcus Vinícius, que chegou a ser preso em 2019, foi denunciado à Justiça pelo MP-RJ por integrar organização criminosa e por fraude em licitação. Em troca de perdão judicial, ele assinou um acordo de colaboração premiada em 2020 com a PGR (Procuradoria-Geral da República), cujo teor segue em sigilo. Este ano, o MP-RJ aderiu ao acordo e, em julho, colheu o depoimento do empresário.

Tanto à PGR quanto ao MP-RJ, ele enviou elementos para corroborar com seus depoimentos, como caderno de anotações, celular e computador —o UOL não teve acesso a esse anexo da colaboração premiada, ainda sob análise da promotoria.

A reportagem cruzou informações do delator com licitações de contratos que não só revelam envolvimento de Marcus Vinícius como indicam irregularidades.

O início. Ex-funcionário de carreira da prefeitura, Marcus Vinícius relatou nesse depoimento que foi chamado em 2011 por Cristiane Brasil para trabalhar na Secretaria de Envelhecimento Saudável para dar "aspecto de legalidade" a um contrato de um projeto social —assinado inicialmente sem licitação— voltado ao atendimento médico de idosos.

Naquela época, ele diz que era conhecido internamente por saber os atalhos necessários para fraudes no município. "A Cristiane me fez um convite específico para trabalhar com ela: 'Marcus, eu trabalho com muitos convênios, sei que você sabe tirar dinheiro deles e preciso que você venha para cá'".

A ex-deputada ficou na pasta entre 2009 e 2014 durante as duas primeiras gestões do atual prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD). De 2014 a 2016, o comando ficou com aliados dela.

A primeira missão de Marcus Vinícius, segundo narrou no depoimento, foi fazer a Servlog Rio vencer uma licitação para o projeto Qualimóvel, que levava aos bairros serviços de saúde voltados à terceira idade. A firma pertence ao empresário Flávio Chadud, que também foi preso em 2019 na primeira fase da Operação Catarata.

A defesa de Chadud afirmou que a delação "é uma obra de ficção na base do ouvir dizer" e que ele "nunca fez pagamento para qualquer agente público". "São afirmações mentirosas para sustentar benefícios graciosos e manter a sua impunidade", diz a defesa do empresário.

Licitação entre amigos. Em fevereiro de 2011, Marcus Vinícius foi nomeado por Cristiane como assessor da pasta que ela comandava. Em maio de 2012, a Servlog Rio venceu o pregão presencial do Qualimóvel. O valor inicial foi de R$ 2,2 milhões por um ano.

Os documentos dessa licitação aos quais o UOL teve acesso revelam que houve mais dois concorrentes: a Tercebrás e a Maxwal Rio. Em um processo de fiscalização desse contrato, o TCM (Tribunal de Contas do Município) detectou que a Tercebrás usou, em sua proposta de preço, o mesmo número de CNPJ da Servlog Rio.

A outra concorrente, por sua vez, a Maxwal Rio, tinha como administrador o próprio Marcus Vinícius, o que caracterizaria uma ação entre amigos.

O processo do TCM durou até 2017, quando foi arquivado sem que houvesse punição. Boa parte das respostas às demandas do tribunal foi dada por Marcus Vinícius, ainda como funcionário da Secretaria de Envelhecimento Saudável, apesar de ele ter participado da licitação representando uma das concorrentes.

De 2012 até 2018, a Servlog Rio recebeu um total de R$ 25 milhões da prefeitura carioca com o projeto Qualimóvel.

11.set.2020 - Cristiane Brasil pouco antes de se entregar à polícia no Rio após ordem de prisão na Operação Catarata - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
11.set.2020 - Cristiane Brasil pouco antes de se entregar à polícia no Rio após ordem de prisão na Operação Catarata
Imagem: Reprodução/Instagram

Propina sem escalas. Segundo Marcus Vinícius, os contratos fraudulentos geraram propina para Cristiane Brasil que não só teria sido paga em dinheiro vivo, mas também por meio de pagamentos diretos a pessoas que prestavam serviços à ex-deputada.

"Não era incomum o Flávio [Chadud] pagar despesas diretas da Cristiane. Pagar aluguel, funcionária da casa. (...) No município [referência ao contrato da Secretaria Municipal de Envelhecimento Saudável], eu tenho certeza: até o guru espiritual da Cristiane a gente pagava direto. (...) O que acontecia? Não havia necessidade do dinheiro transacionar em saques".

Ganhos no estado. Ainda de acordo com o delator, apesar de Cristiane ter tido gerência direta em contratos da Servlog Rio apenas na Prefeitura do Rio, ela teria recebido recursos ilícitos também de contratos assinados pelo governo estadual com a empresa.

Segundo Marcus Vinícius, o mesmo molde de projeto que havia sido implantado no município foi estendido para o governo estadual, em 2013, e durou até 2019, passando por diversos agentes políticos.

Inicialmente, segundo ele, o responsável foi o atual deputado estadual e ex-cunhado de Cristiane Brasil, Marcus Vinícius Neskau (PTB), que foi secretário estadual de Envelhecimento Saudável entre 2013 e 2014.

Efetivamente, na gestão de Neskau, a Servlog Rio ganhou o primeiro contrato do projeto Qualimóvel, em outubro de 2013: R$ 1,2 milhão por três meses de serviços.

Em nota, o deputado afirmou que "não teve acesso à delação e que apenas tomou conhecimento dos conteúdos divulgados pela própria imprensa, não tendo, portanto, nada a comentar".

A empresa continuou sendo contratada para o mesmo trabalho até 2019, quando houve a primeira fase da Operação Catarata.

"Na gênese do primeiro contrato no município da Cristiane [Brasil] com o Flávio [Chadud], eles estabeleceram uma espécie de sociedade informal. (...) Então, quando houve o espelhamento [do contrato] para o estado, a Cristiane exigiu que o Flávio desse a ela ao menos algum valor. É por isso que ela continuou recebendo durante todos esses anos, até 2019, quando houve a operação [Catarata]."

Aulas de fraudes. Foi também neste depoimento que, conforme revelou o UOL em setembro, Marcus Vinícius detalhou suposto recebimento de propina pelo governador reeleito do Rio, Cláudio Castro (PL), nos períodos em que ele foi vice-governador e vereador. O conteúdo foi enviado ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para que seja definida a competência para a análise das informações.

Castro nega qualquer irregularidade e afirmou à época que o vazamento do conteúdo era "criminoso".

Caso fique constatado que alguma informação passada na delação é inverídica, o delator está sujeito à rescisão do acordo e à pena de um a quatro anos de prisão, além de pagamento de multa.

O empresário também se comprometeu a dar, até 2024, aulas de desvio de recursos públicos a membros do Ministério Público e instituições de combate à corrupção.

No depoimento ao MP-RJ, ele detalhou como funcionava o seu método:

"Algumas pessoas trabalham com superfaturamento. Eu nunca trabalhei porque é uma coisa que aparece muito facilmente nos números. A minha forma de trabalhar sempre foi superdimensionamento. Ou seja, se o contrato prevê dez óculos, eu colocava no termo de referência [documento que embasa o edital de licitação] 14. E depois, na hora da execução e da fiscalização, o agente político determinava os fiscais para que alguém dissesse que foram entregues 14. Na verdade, foram entregues dez. O quatro vira diferença, para poder virar dinheiro e pagar as pessoas."