STF discute 'uberização' em meio a disputa com juízes do trabalho

O STF (Supremo Tribunal Federal) discute hoje (8) uma ação que pode definir diretrizes envolvendo a "uberização" e a possibilidade de reconhecimento de vínculo de trabalho entre os entregadores e motoristas e as plataformas. O tema será discutido em meio à falta de regulamentação e um histórico de incômodo da Corte com a Justiça do Trabalho.

O que aconteceu

O processo foi apresentado pela Rappi. A empresa tenta derrubar decisões que reconheceram vínculo de trabalho entre ela e um entregador. O caso não tem repercussão geral - ou seja, valerá somente para esse processo específico - mas é visto pelas plataformas como um precedente mais firme sobre o tema.

É a primeira vez que a "uberização" chega ao plenário. Até então, os ministros costumavam discutir (e derrubar) decisões que reconheciam vínculo de trabalho entre motoristas e entregadores nas turmas, colegiados compostos por cinco magistrados.

O entendimento recorrente é que o Supremo permite formas alternativas de prestação de serviços, com base no julgamento sobre terceirização de trabalhadores, de 2020.

Embates entre STF e Justiça do Trabalho

Mesmo assim, juízes e ministros da Justiça do Trabalho continuaram a reconhecer vínculos entre as plataformas e os trabalhadores, o que causou visível incômodo entre os ministros do STF.

O ministro Alexandre de Moraes disse, em dezembro, que há um "reiterado descumprimento" de entendimentos do STF por juízes do trabalho, ao derrubar uma decisão que reconheceu vínculo entre a Cabify e um motorista.

Segundo o ministro, cerca de 40% das reclamações recebidas envolvem decisões da Justiça do Trabalho. "Em que pese nós decidamos, isso vem sendo desrespeitado, e volta ao STF", disse.

Luiz Fux foi além, e disse que os próprios juízes criam uma "insegurança jurídica" ao descumprir decisões do STF. Ele acionou o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para fazer um levantamento sobre as reclamações que chegam ao Supremo contra a Justiça do Trabalho.

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É um péssimo exemplo de descumprimento de decisão judicial, vindo do próprio Judiciário
Luiz Fux, ministro do STF

Nos últimos meses, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, tem buscado colocar panos quentes na situação. Ele se reuniu com o presidente do TST, Lelio Bentes Corrêa. Ambos discutiram o tema em encontros no Supremo.

Correa relatou preocupação com eventuais impactos da decisão do Supremo sobre as competências da Justiça do Trabalho, segundo o UOL apurou.

Barroso ouviu, e relatou ao presidente do TST que entende a preocupação, mas ressaltou que decisões vinculantes do STF têm sido descumpridas por magistrados trabalhistas.

Juízes temem esvaziamento da Justiça do Trabalho

A preocupação com a perda de competência levou a Anamatra (Associação dos Magistrados do Trabalho) a intensificar o diálogo com integrantes do STF. Ontem, a entidade pediu o adiamento do julgamento para ter mais tempo para conversar com os ministros. O principal receio é que o Supremo mande os casos sobre "uberização" para a Justiça comum, "esvaziando" a Justiça do Trabalho.

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A discussão [no STF] está limitada a Uber e Ifood, mas nós sabemos que toda relação de trabalho pode ser plataformizada. Então, entender que um trabalho de plataforma não seria um trabalho, não tem vínculo, e mandar para a Justiça comum seria um abalo muito grande [para a Justiça do Trabalho]
Luciana Conforti, presidente da Anamatra ao UOL

Conforti afirmou que a entidade tem visto com "preocupação" o envio de ofícios ao CNJ sobre descumprimentos de decisões do STF pela Justiça do Trabalho. Segundo ela, não há descumprimento, e sim interpretações diferentes dos magistrados sobre o tema.

"Temos tentado esclarecer que não há descumprimento deliberado. Pode ter ocorrido um caso ou outro de divergência de interpretação, mas não podemos dizer que em todos os casos houve um descumprimento de precedente", disse.

Governo prometeu, mas regulamentação não avançou

A disputa e a falta de consenso dentro do Judiciário sobre a "uberização" deriva da ausência de uma regulamentação específica sobre o tema, avaliam advogados consultados pelo UOL. Hoje, motoristas e entregadores são enquadrados como autônomos, e por isso não possuem direitos trabalhistas básicos.

O governo federal prometeu entregar uma proposta de regulamentação, mas o texto não avançou. Em maio, o Ministério do Trabalho e Emprego criou um grupo de trabalho reunindo representantes das plataformas e trabalhadores para buscar uma "solução consensual".

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Ministro Luiz Marinho (Trabalho) prometeu apresentar proposta de regulamentação, o que não aconteceu
Ministro Luiz Marinho (Trabalho) prometeu apresentar proposta de regulamentação, o que não aconteceu Imagem: Fátima Meira/Estadão Conteúdo

As reuniões foram conduzidas de maio a setembro, mas não houve avanços, segundo o UOL apurou com participantes. No caso dos entregadores, o principal obstáculo nas negociações é justamente definir como e qual seria a relação de trabalho —só a partir daí se poderia discutir direitos e benefícios.

Mesmo assim, o ministro Luiz Marinho disse no final do ano passado que apresentaria uma proposta de regulamentação ainda em janeiro, o que também não ocorreu. A pasta não respondeu aos questionamentos do UOL.

Divergências travam discussões

Além das divergências entre as plataformas e os trabalhadores, há também uma pluralidade de perfis entre os próprios motoristas e empregadores, o que torna mais complicada a chegada a um consenso.

Somente em 2022, o Brasil registrou 1,5 milhão de pessoas trabalhando por meio de plataformas digitais, segundo o IBGE. Do total, 52,2% (ou 778 mil) eram ligados a aplicativos de transporte de passageiros e 39,5% (ou 589 mil) em aplicativos de entregas.

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Trabalhadores de aplicativos querem direitos e manter flexibilidade no trabalho com apps
Trabalhadores de aplicativos querem direitos e manter flexibilidade no trabalho com apps Imagem: Adriano Alves/UOL

Para Paulo Renato Fernandes, professor da FGV Direito Rio e especialista em Direito do Trabalho, é preciso que a regulamentação forneça direitos e parâmetros mínimos para garantir a dignidade do trabalhador, mas sem as mesmas restrições previstas na CLT.

Qual o modelo de negócio que vou regulamentar? É muito difícil definir. São vários tipos de trabalhadores plataformizados, são várias situações diferentes
Paulo Renato Fernandes, professor da FGV Direito Rio e especialista em Direito do Trabalho

Outro ponto levantado por especialistas é a necessidade de escutar os pleitos dos próprios entregadores, que buscam direitos, mas não abrem mão da flexibilidade do trabalho.

Thomas Conti, doutor em economia e professor do Insper, afirma que pesquisas com entregadores apontam que, além da flexibilidade, os trabalhadores buscam demandas particulares à categoria, como aumento de seguro pessoal e transparência em políticas de suspensão das plataformas, que podem descredenciar entregadores e motoristas por inatividade.

"Algumas dessas coisas são mais fáceis de serem incorporadas, e outras são mais problemáticas", disse.

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Na pesquisa que orientei, há mais trabalhadores interessados em ter vínculo de pessoa jurídica do que vínculo CLT. O vínculo de pessoa jurídica já traz algumas garantias, e é melhor do que vínculo nenhum
Thomas Conti, professor do Insper

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