Cobrado, governo Lula fala em 'bolha' por críticas ao ignorar golpe de 64

O governo Lula (PT) não vai fazer alarde nos 60 anos do golpe de 1964, a serem completados nesta segunda (1º), e vê cobranças por repúdio ao marco histórico como o movimento "de bolha".

O que aconteceu

Reclamações públicas por falta de declarações contra o golpe de 64. Intelectuais e movimentos sociais que tradicionalmente apoiam o PT e o presidente Lula têm reclamado de o governo ainda não ter feito referência ao marco da ditadura militar, que durou 21 anos (1964-1985). No último sábado (23), este foi um das temas das manifestações de esquerda em algumas cidades brasileiras. Elas terminaram esvaziadas.

O distanciamento, geralmente creditado ao ministro da Defesa, José Múcio, é quase unânime do governo. Aliados e auxiliares admitem que o gesto "mais compatível" seria fazer um ato de repúdio, mas dizem que "não vale a briga". O próprio PT decidiu de participar de atos sobre o golpe, mas sem cobrar o presidente.

Oficialmente, o Planalto não trata do assunto, mas o desestímulo por parte do presidente foi confirmada ao UOL por membros do governo. A presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos, Eneá de Stutz e Almeida, confirmou ontem em entrevista que Lula vetou manifestações da pasta e lamentou o ocorrido. "Foi com muita surpresa, foi um verdadeiro choque quando recebi a notícia", disse.

Ministros evitam falar de uma imposição direta de Lula para que não haja manifestações, mas admitem que tampouco houve qualquer estímulo para debate sobre o marco. Postagens em redes sociais não estão descartadas, mas não haverá um grande evento. O UOL procurou a Secom (Secretaria de Comunicação) e o Ministério dos Direitos Humanos, mas não teve resposta sobre possíveis orientações.

"Qual a prioridade?"

Embora fale sobre democracia em quase todos os discursos, Lula não citou até agora o golpe de 64. Preso pela ditadura no final dos anos 1970, uma das lideranças das Diretas Já e deputado constituinte, o hoje presidente pede que essa "disputa" fique no passado.

Os movimentos sociais e intelectuais reclamam. "É fundamental olharmos para o passado para a construção de um presente e futuro onde haja justiça social", disseram as frentes Brasil Popular e Povo sem Medo ao chamarem para as manifestações. Petistas mais à esquerda e intelectuais também têm se mostrado publicamente insatisfeitos.

Ministros ouvidos pelo UOL argumentam que o presidente e o governo têm "outras preocupações". De acordo com eles, embora haja reclamações pontuais, no fim das contas, o que cada movimento quer é que os problemas das suas respectivas áreas sejam resolvidos. Segundo expressou um deles, o movimento de crítica é "mais de bolha". Ou da "intelectualidade", completou outro colega.

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Crítica sem efeito prático. Se o governo diminuir o número de famílias sem moradia, por exemplo, não vai ser criticado na área de habitação por falta de lembrete sobre a ditadura, argumentam membros do governo. José Múcio, a quem geralmente é atribuída a defesa dos militares dentro do governo, não está sozinho nesse discurso: diferentes ministros, de diferentes estilos e vertentes políticas, deram explicações semelhantes.

O governo também á diz ter feito sua parte ao voltar a vetar, em 2023, que a Ordem do Dia comemorando o golpe nos quartéis. A celebração, todo dia 31 de março (data usada pela ditadura), ficou vigente nos primeiros mandatos de Lula, foi proibida por Dilma Rousseff (PT) e retomada por Jair Bolsonaro (PL), em 2019.

Na cúpula petista, tampouco há um entendimento de erro por parte de Lula. Embora o partido tenha decidido participar dos atos de repúdio, lideranças dizem entender que, enquanto governo, o presidente enfrenta limitações e obrigações que eles, não.

Evitar mais rusgas

Nem sempre foi assim. Segundo o UOL apurou, o Ministério dos Direitos Humanos, comandado por Silvio Almeida, pretendia fazer ações de comunicação que relembrassem violações, mortes e desaparecimentos da ditadura e também repudiassem o golpe.

O processo parecia natural, já que a data da efeméride era "redonda" e dado o posicionamento histórico do PT e de Lula contra a ditadura. Não houve, no entanto, a aceitação que se pretendia. O UOL conseguiu confirmar que a campanha foi diretamente desestimulada por ordem "do terceiro andar", em referência ao local da sala presidencial. Enéa, que participava dos preparativos, disse que a comissão recebeu a decisão "com perplexidade e decepção".

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Aliados dizem que Lula avalia que já há rusgas demais com as Forças Armadas. Já houve o envolvimento de militares com a minuta golpista. Eles argumentam que, "se for para arrumar briga", este, sim, deve ser o foco, não o golpe de 60 anos atrás.

Lula tem repetido que quer "viver o hoje". Também tem feito gestos públicos para se aproximar dos militares —o que tem aumentado à medida que as investigações indicam que as corporações, em especial a Marinha, estavam envolvidas nos supostos planos golpistas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

No jeito conciliador que lhe é peculiar, Lula tem levado a sério a máxima de "trazer todos para perto". Na última semana, ele jantou na casa do comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, com Múcio e Pimenta. Na última quarta (27), a primeira-dama Janja da Silva foi a madrinha do lançamento de um submarino da corporação — neste evento, Lula elogiou os militares em diversos momentos.

A Marinha era conhecida como a "mais bolsonarista das Forças Armadas". Segundo depoimentos divulgados pela Polícia Federal, o ex-comandante Almir Garnier colocou a Força à disposição de Bolsonaro caso ele quisesse colocar em prática o plano de golpe de Estado.

Lula também gosta muito do atual comandante do Exército, general Tomás Paiva. O presidente não perde a oportunidade de elogiá-lo e de falar do seu "senso democrático". Ele foi escolhido após a exoneração do general Júlio César de Arruda, em janeiro de 2023, em decorrência dos atos golpistas. O Exército foi a principal liderança da ditadura brasileira entre as Forças Armadas, com todos os cinco generais-presidentes.

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