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Coronavírus: 'Tive de abrir igreja do cemitério para abrigar a grande quantidade de corpos', diz prefeito italiano

Giorgio Gori, prefeito de Bergamo, disse estar surpreso que outros governos europeus demoraram tanto para tomar medidas contra o novo coronavírus - Francisco Alleva/Comune di Bergamo
Giorgio Gori, prefeito de Bergamo, disse estar surpreso que outros governos europeus demoraram tanto para tomar medidas contra o novo coronavírus Imagem: Francisco Alleva/Comune di Bergamo

Angelo Attanasio

17/03/2020 09h10

A cidade de Bergamo, no norte da Itália, vive há duas semanas uma situação desafiadora: há milhares de infectados pelo novo coronavírus e, apenas na última semana, mais de 300 mortos na província.

"Chegamos ao limite". É assim que Giorgio Gori, o prefeito de Bergamo, resume as últimas semanas na cidade de 122 mil habitantes no norte da Itália, a cerca de 60 km de Milão.

Com 3,4 mil infectados (dados de 15 de março), a província de mesmo nome é a mais afetada pelo coronavírus no país europeu, em um cenário que está sobrecarregando o sistema de saúde local.

No restante da região da Lombardia - que tem cerca de 10 milhões de habitantes -, são mais de 13 mil casos, e cerca de 1,2 mil mortes.

Os médicos no hospital Giovanni 23, o maior da cidade, também chegaram a um limite. Eles colocam até sete pacientes por dia em ventilação mecânica e descansam, em média, um dia a cada duas semanas. Somente nesta província, mais de 50 médicos já foram infectados desde o início da pandemia.

Um vídeo que está circulando nas redes sociais mostra como, no jornal local, as páginas dedicadas a obituários passaram de três, no dia 9 de fevereiro, a 11, no dia 13 de março.

Coronavírus liga alerta pelo mundo

Em entrevista à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Gori, prefeito da cidade há seis anos, lamenta que os políticos - "inclusive eu" - tenham subestimado, a princípio, a gravidade da situação.

Essa atitude, aliada a um surto de coronavírus em um hospital da região, não identificado corretamente entre dezembro e janeiro, contribuiu para que a epidemia crescesse rapidamente.

Agora, Gori se diz surpreso que, depois da experiência italiana, outros governos europeus tenham demorado tanto para tomar medidas de contenção.

"Tenho duas filhas que estudam no Reino Unido e ontem à noite fiz com que voltassem para a Itália", explicou por telefone de seu escritório na prefeitura.

Leia a entrevista completa abaixo.

BBC News Mundo - Como está a situação atual na cidade?

Giorgio Gori - Neste momento, nós somos o epicentro europeu da epidemia de covid-19. Temos o maior número de pessoas infectadas, internadas, e, lamentavelmente, também de vítimas. Apenas na última semana, foram mais de 300 mortos em decorrência do coronavírus.

Eu mesmo tenho em meu círculo próximo pessoas que se infectaram e outras que lamentavelmente faleceram.

De acordo com epidemiologistas, a taxa de letalidade nesta região é proporcional à propagação do vírus.

Mas acredito que esses números sejam maiores, porque estou convencido que não estamos registrando todos os casos de coronavírus. A maioria dos infectados não apresentam sintomas e não sabem que têm o vírus.

É por isso que imploramos ao governo que impusesse medidas de distanciamento social. Se isso não tivesse sido feito, teríamos dezenas de milhares de infectados pelas ruas, possivelmente com sintomas muito leves mas ainda assim capazes de contaminar outros, e a situação seria infinitamente pior.

E esse número de mortes nos mostra a gravidade do fenômeno.

BBC - Que medidas você teve que tomar para lidar com essa situação extraordinária?

Giorgio Gori - Tivemos que fechar o cemitério da cidade para proteger as pessoas mais velhas que estavam indo visitar seus entes queridos que morreram nas últimas semanas.

Por outro lado, precisamos abrir o necrotério e a igreja do cemitério para abrigar a grande quantidade de cadáveres que se acumulou.

Precisamos, inclusive, pedir ajuda a outras cidades para que nos deixassem usar seus fornos crematórios, porque os nossos não são mais suficientes.

A primeira cidade foi Civitavecchia (próxima a Roma, a cerca de 600 km de Bergamo), e ontem o prefeito de Modena (na Emilia Romana, outra das regiões mais afetadas pela epidemia) me ligou para dizer que poderiam cremar 25 cadáveres.

Em breve enviarei um conjunto de cartas para informar a prefeitos de outras cidades que estamos passando esse triste fardo para eles.

BBC - Alguns pacientes também foram transferidos para outras cidades italianas.

Giorgio Gori - Sim, por exemplo, dois cidadãos de Bergamo estão sendo atendidos no hospital de Palermo (na Sicilia, a mais de 1.500 km de distância).

Essa é a situação mais urgente de todas: a falta de leitos de UTI devido ao aumento contínuo do número de pacientes.

A capacidade da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital Giovanni 23, de Bergamo, estava sendo expandida constantemente, de uma maneira quase milagrosa, e sempre encontramos soluções para atender todos os doentes. Porém, chegamos a um limite, e esse limite já foi ultrapassado várias vezes.

Tudo dependerá de como a situação vai evoluir na próxima semana. Se tivermos resultados positivos, isto é, se diminuirmos o número de infectados e internados, o sistema de saúde, ainda com dificuldade, conseguirá resistir.

Por outro lado, se não diminuirmos a curva da epidemia, os especialistas dizem que o sistema não terá condições de aguentar.

BBC - O governo italiano deve decidir em breve sobre a construção de um hospital especial para cuidados intensivos próximo a Milão, parecido com o que foi feito em Wuhan, na China.

Giorgio Gori - Sim, isso aliviaria a situação em toda a região da Lombardia, mas também precisamos de muitos ventiladores mecânicos e muitos mais médicos.

Estamos chamando médicos aposentados, estamos recrutando residentes e estamos considerando a possibilidade de contratar médicos estrangeiros.

Até agora, Cuba, Venezuela e China disseram que poderiam enviar profissionais de seus países.

BBC - Como a comunidade de Bergamo está reagindo?

Giorgio Gori - Essa é uma comunidade de pessoas capazes de compreender com seriedade a responsabilidade individual que cada um leva consigo. Explicamos que só poderemos controlar esse vírus se todos cumprirem as regras.

Iniciativas solidárias para ajudar a comunidade também estão sendo feitas.

Duas, em particular: a primeira são as centenas de voluntários que se colocaram à disposição para levar alimentos, remédios e assistência especialmente aos idosos que vivem sozinhos. Infelizmente, máscaras de proteção estão em falta. Estamos procurando por toda parte, pedindo que qualquer um envie o que puder, na Itália ou em outros países, pois esses voluntários não podem trabalhar sem proteção.

A outra iniciativa é a dos trabalhadores de nossas bibliotecas comunitárias, que leem contos pelo Facebook para as crianças que estão em casa e não podem ir às escolas. Eles até inventaram um novo conto.

Então, em Bergamo temos essas duas imagens: a de uma cidade completamente deserta e a de uma cidade profundamente solidária.

Enterro no cemitério municipal de Bergamo, na Itália, em 16 de março de 2020 - Getty Images - Getty Images
Na última semana, 300 pessoas morreram na província de Bergamo
Imagem: Getty Images

BBC - Nos últimos dias, em muitas cidades italianas, as pessoas foram às sacadas de suas casas para cantar e tocar músicas, para relaxar nesse momento difícil. Isso também está acontecendo em Bergamo?

Giorgio Gori - Sim, isso também acontece aqui, mas talvez um pouco menos. No momento, um sentimento de emergência está mais presente no espírito coletivo. Creio que ainda é um pouco cedo para que a cidade vá até suas janelas para cantar.

BBC - Em 2016, você organizou o "maior abraço do mundo": mais de 11 mil pessoas ficaram em volta dos muros venezianos da cidade velha para pedir que fossem reconhecidos como Patrimônio da Humanidade. E conseguiram. Vocês repetirão o gesto quando a epidemia acabar?

Giorgio Gori - [Risos]. É uma boa ideia. Com certeza vamos organizar uma grande festa.