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Só médico não basta, programa deve criar equipes nos rincões, diz Pastoral

Camila Neuman

Do UOL, em São Paulo

14/09/2013 07h00

Mais do que somente levar médicos aos rincões do país, o programa Mais Médicos, do governo federal, deveria também selecionar enfermeiros e auxiliares de enfermagem locais na tentativa de melhorar o atendimento nessas regiões. Essa é a opinião do médico epidemiologista Nelson Arns Neumann, 48, coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança.

  • Arte UOL

    Saiba qual a proporção de médicos em cada Estado e o panorama em outros países

“Há experiências importantes de interiorização, mas tem que ter uma equipe de saúde mínima com médico, enfermeiro e técnico de enfermagem, não só com médicos”, afirma.

Filho da fundadora da pastoral, a médica pediatra e sanitarista Zilda Arns –morta durante terremoto no Haiti em 2010, durante missão no país --, Neumann é também responsável pelas missões internacionais da entidade, que levam assistência médica básica a países pobres como Angola e o próprio país caribenho desde 1996, início das missões no exterior.

Atualmente, a Pastoral atua em 21 países, além do Brasil, como Colômbia, Moçambique, Guatemala, Venezuela e Timor Leste, com ações voltadas a diminuição da mortalidade infantil.

Entre as ações, os voluntários orientam gestantes e mães quanto à necessidade do aleitamento materno para manter a saúde das crianças, além de levar informações voltadas à educação e segurança, com base no catolicismo, de porta em porta de comunidades periféricas.

Como curar "puxaço" e "corredeira"?

Opinião: Drauzio Varella

  • A questão dos médicos estrangeiros caiu na vala da irracionalidade. No meio desse fogo cruzado, com estilhaços de corporativismo, demagogia, esperteza política e agressividade contra os recém-chegados, estão os usuários do SUS.

    Insisto que sou a favor da contratação de médicos estrangeiros para as áreas desassistidas, intervenção que chega com anos de atraso. Mas devo reconhecer que a implementação apressada do programa Mais Médicos em resposta ao clamor popular, acompanhada da esperteza de jogar o povo contra a classe médica, é demagogia eleitoreira, em sua expressão mais rasa.

    Leia, na íntegra, o artigo de Drauzio Varella

Levando em conta suas próprias experiências no Brasil e no exterior, o médico afirma que enfermeiros e técnicos podem ter papel fundamental no diagnóstico de pacientes dessas populações.

No fim dos anos 80, enquanto atendia uma mulher do interior do Maranhão, Neumann se lembra de ter sido questionado como tratar os filhos dela que estavam com "corredeira" e "puxaço". A técnica de enfermagem local entendeu as queixas e fez a "tradução" ao doutor.

“O que você faz em uma hora dessas? Chamei uma técnica de enfermagem que me disse que corredeira era diarreia e puxaço um problema respiratório porque a criança ficava puxando o ar com dificuldade”, contou.

Ainda durante a consulta, a própria mulher queixava-se de ficar doente uma vez por mês, o que a deixava "muito incomodada".  Ainda com a ajuda da técnica, o médico conseguiu entender que o incômodo tratava-se de uma menstruação prolongada, não antes de levar uma bronca da paciente.

“Você é médico e não sabe que a mulher fica doente todo o mês”, ouviu.

No exterior, Neumann também costuma contar com o auxílio de enfermeiros e técnicos de enfermagem antes de começar os atendimentos. Considerados "informantes chave", eles orientam o médico e os voluntários da pastoral sobre a linguagem e a cultura local.

“Nós não começamos a dar conselhos e a medicar antes de passar por um processo de aculturação. Da mesma forma que no início das missões temos um técnico de enfermagem da própria comunidade como mediador para sabermos se a pessoa está entendendo o que está prescrito”, afirmou.

"Apartheid social"

A dificuldade de linguagem mesmo entre brasileiros reforça a ideia de que problemas semelhantes não acontecerão somente com os médicos estrangeiros que chegaram pelo programa, segundo Neumann.

“Não é só estrangeiro que passa por essa dificuldade. Pode acontecer com um médico brasileiro que trabalha inclusive na mesma cidade do paciente, mas em uma classe social diferente. A gente tem um Apartheid social muito claro no Brasil. Quem frequenta faculdade de medicina não é a população pobre”, afirmou.

Sendo assim, Neumann disse não ser contrário à vinda de estrangeiros ao país por “não ter dúvidas da falta de médicos nas áreas mais pobres do país”. Mas discorda da visão da “saúde centrada no médico” mesmo nas regiões mais distantes.

“A forma de levar médicos para essas áreas é muito mais complexa do que uma simples contratação de médicos estrangeiros. Eu tenho três filhas, você acha que eu iria deixá-las em um lugar não há condições, onde não possam fazer um ensino médio decente? Tem que haver uma condição de vida adequada, não só em saúde, mas com entretenimento, que é o que está escrito na Constituição”, afirmou.