Jamil Chade

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Reportagem

Golpistas temiam sanções internacionais e planejaram ação externa

Um arquivo encontrado com um dos suspeitos de planejar um golpe no Brasil admitia que o país poderia sofrer sanções internacionais. Mas também apresentava uma estratégia para convencer a opinião pública mundial, enquanto conversas entre os suspeitos indicavam até mesmo o uso de adidos militares na embaixadas brasileiras pelo mundo para levar adiante o plano.

Os dados constam do relatório da Polícia Federal de 14 de novembro de 2024, que deu base ao pedido de prisão de quatro militares, nesta semana.

Ao descrever o envolvimento do tenente-coronel do Exército Helio Ferreira Lima, a PF destaca que ele já havia sido alvo de busca e apreensão e busca pessoal no âmbito da operação Tempus Veritatis, deflagrada pela Polícia Federal em 8 de fevereiro de 2024. Naquele momento, o militar teve apreendido diversos itens, entre os quais dispositivos eletrônicos.

A planilha com o nome "Desenho Op Luneta.xlsx" foi localizada em um pendrive, apreendido em poder do militar. "O documento, trata-se de uma planilha com mais de duzentas linhas de preenchimento abordando fatores estratégicos de planejamento, quais sejam: fisiográfico, psicossocial, político, militar, econômico e produção", destacou o informe da PF.

"O documento faz um detalhamento pormenorizado de plano de operação cuja missão seria "reestabelecer a lei e a ordem por meio da retomada da legalidade e da segurança jurídica e da estabilidade institucional" e que visaria impedir um cenário de ameaça a qual "em suposta defesa da democracia, (objetivaria) controlar os 3 poderes do país e impor condições favoráveis para apropriação da máquina pública em favor de ideologias de esquerda ou projetos escusos de poder".

"O conteúdo do documento contém trechos que indicam um planejamento de ruptura institucional em razão, possivelmente, do resultado das eleições presidenciais de 2022", afirma o informe da PF.

Além da necessidade de "neutralização" da capacidade de atuação do STF e do ministro Alexandre de Moraes, o documento insiste no uso de uma narrativa de uma suposta fraude na eleição para justificar as ações.

Mas, segundo a PF, "a essência de uma ação de ruptura democrática contida no referido planejamento mostra-se mais evidente tendo em vista a preocupação com o impacto internacional de uma eventual concretização das ações elencadas".

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Num dos trechos do documento de posse do militar, há uma referência clara a isso. Entre os pontos descritos está:

  • RISCO DE SANÇÕES INTERNACIONAIS EM CASO DE RUPTURA.

No mesmo bloco estão mencionados a "existência de fatores geradores de instabilidade no STF" e a "instabilidade institucional" que uma ruptura democrática poderia causar.

Plano de comunicação no exterior e reforçar fronteiras

Em outra parte do documento, porém, os militares também acenavam sobre como deveriam agir para minimizar esse impacto, inclusive na imprensa e na opinião pública mundial.

Isso incluiria uma narrativa que adotaria estratégias como:

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  • Exploração da legalidade do novo processo eleitoral realizada; exploração da execução dos mandados coercitivos realizadas amplamente;
  • Detalhes da tentativa de destruição da democracia brasileira divulgadas amplamente;
  • Exploração de indicadores de sensação de segurança jurídica realizada.

De forma prática, eles ainda propunham "reforçar a segurança das fronteiras" e "reforçar a comunicação estratégica interna e externa do país".

A operação para divulgar uma suposta fraude nas eleições no Brasil também era a preocupação em uma outra conversa, em 4 de novembro de 2022.

Nos diálogos obtidos na investigação, tanto o chefe de gabinete da presidência, Mario Fernandes, quanto o coronel Reginaldo Vieira de Abreu buscaram maneiras para alegar a suposta fraude. "Abreu indica, ainda, possíveis estratégias alternativas, como por exemplo, a utilização de adidos militares para "fazer propaganda", diz o informe da PF.

"Tem que usar os adidos militares nas embaixadas para fazer propaganda e cooptar a população lá fora. A mídia internacional. Tem que usar o adido, não o embaixador", sugeriu.

Pressão de Biden e dos europeus

O temor dos militares de uma eventual sanção não era por acaso. Ao longo de meses, o governo de Joe Biden, nos EUA, mandou recados claros às forças armadas no Brasil de que não aceitariam um golpe.

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A lógica da atuação de Biden não era apenas garantir a democracia num país sul-americano. O centro de sua preocupação era o eco que um golpe da extrema direita poderia ter em seu próprio país, principalmente depois das cenas da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

Em julho de 2022, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington sob o comando de Biden, caso optassem por uma aventura golpista.

De um lado da mesa estavam Laura Jane Richardson, general quatro estrelas do Exército dos EUA e chefe do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano. De outro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa do Brasil e ex-comandante do Exército brasileiro.

Fontes que estiveram naquela sala relembram como o tom usado pelos representantes de Biden foi claro: as instituições democráticas brasileiras eram sólidas. Ou seja, não haveria qualquer tipo de apoio a uma ofensiva por parte dos militares brasileiros em relação ao questionamento contra a democracia no país.

O recado foi entendido por todos que estavam naquele local. Dias antes, o então presidente Jair Bolsonaro havia usado um encontro com embaixadores estrangeiros em Brasília para atacar as urnas eletrônicas e questionar o processo eleitoral no Brasil.

Naquele momento, o governo recebia uma série de visitas do mais alto escalão do governo americano, incluindo o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA) e a cúpula da Segurança Nacional.

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Mais de um ano após os atos de 8 de janeiro, diplomatas admitem que a pressão discreta por parte de Biden ajudou a mandar um recado aos militares brasileiros de que um processo golpista não encontraria respaldo pelo mundo. Pesou ainda uma carta de senadores americanos pedindo que o presidente americano suspendesse qualquer acordo militar com o Brasil, caso uma ruptura institucional ocorresse.

O recado era simples: um golpe poderia até ocorrer. Mas o dia seguinte do novo regime traria custos elevados para aqueles no poder. Sem o apoio de membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), restariam ao eventual novo governo golpista alianças com párias internacionais e regimes isolados dispostos a usar o Brasil para fortalecer posições contra os EUA.

Articulação partiu do Brasil

Se a ação americana ajudou a dar resultados, a iniciativa não ocorreu por acaso e nem se limitou aos EUA. Desde 2021, forças políticas brasileiras, ministros do STF, grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos começaram a identificar que o cenário de um eventual golpe poderia ocorrer no Brasil, repetindo a invasão do Capitólio nos EUA ou criando dificuldades e instabilidade para o novo governo.

A ofensiva brasileira tinha como objetivo criar uma situação na qual o custo de um golpe fosse insuportável aos seus apoiadores, desde militares aos operadores do sistema financeiro. Para isso, precisavam que o mundo impusesse esse custo.

Em sigilo, conversas começaram a ser realizadas para alertar países de que era necessário uma reação para ajudar a blindar a democracia brasileira. A estratégia contou com vários atores, de diversos Poderes.

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Um deles foi o uso deliberado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e uma ofensiva para convencer embaixadas estrangeiras em Brasília de que as urnas eram confiáveis e que o sistema era sólido.

Ainda em 2022, uma visita organizada pelo Judiciário aos delegados de vários países causou uma profunda irritação em Bolsonaro, já que desmentia a própria narrativa do presidente.

A conscientização dos ministros das cortes supremas no Brasil havia começado, de fato, muito antes. Dias Toffoli teve um encontro que deixaria claro o fato de que a comunidade internacional entendia que, depois do Capitólio, o país era a "bola da vez".

Em Washington e em capitais europeias, grupos de ativistas brasileiros foram recebidos por governos, deputados e autoridades, justamente para tratar da ameaça que a eleição no final daquele ano representava.

Embaixadores aposentados e dissidências dentro do Itamaraty também agiram para fazer soar o alerta em diversas capitais pelo mundo. "O recado era de que existia uma chance real de que o governo Bolsonaro repetiria o comportamento de Trump e não aceitaria o resultado da eleição", relembra um embaixador brasileiro, na condição de anonimato. O ex-presidente sempre negou qualquer participação em uma tentativa de golpe de Estado.

Nos EUA, o embaixador Thomas Shannon também foi um importante interlocutor entre o gabinete de Joe Biden e aqueles que alertaram para o risco de um golpe.

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Bolsonaro tentaria revidar, organizando uma reunião com embaixadores estrangeiros para criticar o sistema eleitoral nacional. Com várias das delegações já alertadas, o encontro foi um fracasso e, meses depois, gerou a inelegibilidade do ex-presidente.

Biden condenou publicamente os ataques de 8 de janeiro

Do lado americano, assim como europeu, os gestos indicaram que o processo eleitoral brasileiro não seria apenas mais um no mundo.

Durante a apuração, no segundo turno de 2022, embaixadas estrangeiras enviaram mensagens de apoio ao processo eleitoral e de confiança em relação às urnas. Imediatamente após o anúncio dos resultados, governos se apressaram em felicitar Lula. Ali, o que estava em jogo não era o candidato do PT. Mas a capacidade de que, nas urnas, a extrema-direita fosse derrotada.

O segundo teste seria a posse de Lula. Uma vez mais, governos de todo o mundo enviaram seus representantes para Brasília. Não se tratava de uma chancela ao presidente Lula. Mas uma demonstração de força contra a extrema-direita e uma tentativa de blindar qualquer tipo de ação. O resultado foi uma posse com mais de 70 delegações estrangeiras, um recorde.

O maior teste, porém, fica no dia 8 de janeiro de 2023, com as cenas que rapidamente ganharam o mundo acendendo um alerta internacional em relação à extrema direita e a necessidade de vigilância permanente. Líderes se apressaram para deslegitimar um golpe no Brasil, enquanto membros do governo passaram a ser alvos de telefones e demonstrações de apoio.

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Numa manobra coordenada, EUA, Europa e América Latina blindaram Lula e a democracia brasileira, insistindo que não haveria qualquer chancela a uma ameaça de ruptura. A necessidade de uma reação ficou ainda mais clara quando, nos serviços de inteligência, foi identificada a "comemoração" que ocorria nos principais canais da extrema direita no mundo. Não faltaram comentários de Steve Bannon, articulador americano, e de outros nomes.

Os EUA, país que viveu cenas similares em 2021, também se manifestaram em apoio ao Brasil, imediatamente.

O presidente Joe Biden chamou os ataques de "ultrajantes". "Condenamos os ataques contra a presidência, Congresso e Corte Suprema do Brasil hoje", afirmou Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano. "Usar violência contra instituições democráticas é sempre inaceitável", disse. "Nos aliamos ao presidente Lula para pedir um fim imediato a essas ações", declarou. Assessores de Biden afirmaram que a democracia no Brasil era "inabalável".

Jamie Raskin, deputado que investiga os atos de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio, afirmou que "as democracias do mundo precisam agir rapidamente para deixar claro que não haverá apoio" aos criminosos de direita.

Chamando os golpistas de "fascistas", ele destacou que os criminosos repetiram a receita de Donald Trump e que precisariam terminar na "prisão".

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