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Cigarro, álcool e pobreza já causavam microcefalia antes de surto de zika

Percio Campos/EFE
Imagem: Percio Campos/EFE

Fernando Cymbaluk

Do UOL, em São Paulo

16/04/2018 12h33

Antes do surto de microcefalia causada pelo vírus da zika em 2015, cidades brasileiras já apresentavam número elevado da má formação congênita, em que o cérebro não se desenvolve de maneira adequada. De acordo com uma pesquisa feita com mais de 10 mil recém-nascidos em 2010, a anomalia estava ligada a diversos fatores, como uso de álcool e tabagismo durante a gravidez e consequências da pobreza na saúde, como a má nutrição do feto. 

A pesquisa, publicada no periódico da Academia Americana de Pediatria, foi feita com base em dados coletados em São Luís (MA) e Ribeirão Preto (SP) sobre a saúde geral de bebês, hábitos das mães e aspectos socioeconômicos das famílias. Essas informações fazem parte de um estudo em que as crianças são acompanhadas durante vários anos. Um dos registros feitos foi o do perímetro da cabeça dos recém-nascidos.

"Foi um achado ver que tanto a microcefalia leve quanto a microcefalia grave já tinham níveis aumentados antes do surto de zika", diz Heloisa Bettiol, professora Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo). Para ela, os resultados mostram que mesmo antes do surto de 2015, a microcefalia já era endêmica no Brasil -- ou seja, casos da doença se repetiam em número relevante ao longo do tempo. 

Os pesquisadores encontraram um alto índice de microcefalia utilizando tanto critérios adotados pelo Ministério da Saúde quanto outros existentes na literatura médica. Com base nos critérios do Ministério da Saúde, em São Luís foram verificados 174 bebês microcefálicos, (4,1% de um total de 4.220 analisados). Já em Ribeirão Preto, 232 crianças (3,1% de 7.376) nasceram com a anomalia.

Uma diferença desses casos com relação à epidemia de microcefalia causada pelo vírus da zika está na gravidade da doença.

Antes do surto de zika, a maioria dos casos era de microcefalia leve, que não causa grande deformação e lesões cerebrais, mas comprometem o desenvolvimento da criança."

Heloisa Bettiol

Em análises de casos de microcefalia associados à zika em 2015, especialistas chegaram a apontar uma taxa de 71% de microcefalia grave. No estudo feito com dados de 2010, cerca de 15% eram de microcefalia grave. Ainda assim, a pesquisa verificou que a forma severa do problema ocorria em quantidade acima do esperado, com 33 casos em São Luís e 55 casos em Ribeirão Preto (0,8% do total analisado nas duas cidades).

Os números oficiais mostram um salto da prevalência da microcefalia de 0,57 a cada 10 mil nascidos em 2010 para 5,5 a cada 10 mil nascimentos em 2015. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2015 e 2016, o país registrou 2.205 casos confirmados de microcefalia possivelmente associados a zika. No mesmo período, foram registrados 206 óbitos suspeitos de microcefalia ou alteração do sistema nervoso central após o parto ou durante a gestação. 

Contudo, esses números podem ter sido ainda maiores devido à subnotificação, problema identificado na pesquisa realizada na capital maranhense e na cidade do interior paulista. Os pesquisadores perceberam que apenas 10% dos casos de 2010 havia sido notificado. Assim, confirma o indicado pelo Estudo Colaborativo Latino-Americano de malformações congênitas, que estima que 66% dos casos de microcefalia graves não são notificados. Os pesquisadores querem analisar agora uma pesquisa semelhante feita em 1978 para saber qual era a prevalência de microcefalia há 40 anos.

Microcefalia 2 - Getty Image - Getty Image
Tabagismo, consumo de álcool e efeitos da pobreza durante a gravidez estão entre causas da microcefalia
Imagem: Getty Image

Tabagismo, álcool e pobreza são causas

Como não havia a circulação do vírus da zika em 2010, os casos de microcefalia encontrados no estudo evidenciaram outros fatores por trás da má formação -- muitos deles já conhecidos pelos médicos. Parte dos casos de microcefalia foram associados a deformidades cranianas causadas pela saída do bebê no parto vaginal, quando a redução do perímetro é temporária, voltando ao normal em poucas horas. 

O problema com maior relação com a microcefalia foi a restrição do crescimento intrauterino, que ocorre quando o crescimento do feto como um todo é dificultado. "A restrição pode ser provocada por diversos fatores, como doenças que dificultam a oxigenação do sangue e a passagem de nutrientes para a placenta. Isso faz com que o bebê cresça menos", explica Bettiol.

Outro fator bastante associado à microcefalia é o tabagismo. "O estudo mostra que é cinco vezes maior a chance de um bebê de mãe fumante ser microcefálico do que o da mãe que não fumou. E isso independe do nível socioeconômico, de restrição do crescimento do feto, do tipo de parto", diz a médica.

De acordo com o Ministério da Saúde, 8% das mulheres com mais de 18 anos eram fumantes em 2016 no Brasil. Uma pesquisa da revista Addiction mostra que 87% das mulheres que fumam não deixam o vício de lado quando engravidam. A fumaça do cigarro tem mais de 4,7 mil substâncias tóxicas e está relacionado a mais de 50 doenças. 

Já a pobreza é associada à microcefalia por causar nutrição deficiente do bebê na barriga da mãe. "Ainda há no país situação de insegurança alimentar, em que a pessoa come um dia, mas no outro não sabe como irá comer", diz Antônio Augusto Moura da Silva, professor titular da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). A vulnerabilidade socioeconômica foi verificada a partir de dados como baixa escolaridade materna, mãe que vive sem companheiro ou união consensual e nascimentos em hospitais públicos.

O consumo de álcool durante a gravidez, causador da síndrome alcoólica fetal, também aparece como associado à microcefalia. São causadores da má formação doenças infecciosas como rubéola, sífilis, herpes, toxoplasmose e citomegalovirose.

Microcefalia 3 - André Penner/AP - André Penner/AP
Bebê com deformação causada por microcefalia recebe estímulo durante tratamento em João Pessoa, na Paraíba
Imagem: André Penner/AP

Microcefalia leve não é notada no início

Para os especialistas, é comum a microcefalia leve passar desapercebida quando a criança nasce. "Vão perceber mais à frente, com os problemas de desenvolvimento que estão relacionados à má formação", afirma Silva. Segundo ele, o surto associado ao vírus da zika chamou a atenção pelo fato dos casos terem sinais claros. "Há a redução do volume do crânio, como se estivesse faltando um pedaço", afirma.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) padroniza como microcefálico o recém-nascido com um perímetro cefálico com mais de 2 desvios-padrão abaixo da média para idade gestacional e sexo -- que em geral é de 32 cm para bebês com 37 semanas ou mais. Já a microcefalia grave ocorre quando há perímetro cefálico com mais de 3 desvios-padrão abaixo da média.

A microcefalia grave causa importantes sequelas, com complicações respiratórias, neurológicas e motoras. "Na microcefalia leve, é difícil notar consequências. A criança tem dificuldade escolar, depois de colocação no mercado de trabalho", diz Silva. Segundo ele, a estimulação nos primeiros anos de vida ajuda no desenvolvimento do bebê microcefálico. Não há tratamento específico para o problema, e as ações de suporte a serem adotadas dependem das funções comprometidas.