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Tenho certeza que vou pegar coronavírus, diz médica brasileira na Itália

A médica brasileira Mariana Dacoregio, que trabalha na Itália - Arquivo pessoal
A médica brasileira Mariana Dacoregio, que trabalha na Itália Imagem: Arquivo pessoal

Eliane Oliveira

Colaboração para o UOL, em Milão (Itália)

16/03/2020 13h12

Todos os dias, centenas de médicos e enfermeiros dobram plantões, dormem pouco, se alimentam como podem e convivem com dores, angústias e lágrimas na Itália. Trabalham sem dia e sem horário porque quem está na linha de frente contra a epidemia do coronavírus não pode esmorecer.

A médica brasileira Mariana Dacoregio, há 4 anos na Itália, é um destes profissionais. Ela é residente de medicina de urgência e emergência no Hospital Civil de Brescia, entre os maiores no norte Itália e a segunda província em número de contágios.

"A doença em si não é terrível. O que diferencia de outras doenças virais é que cada um que fica doente pode passar para outras três, quatro pessoas. O vírus comum da gripe passa para, normalmente, uma pessoa. Desta forma a covid-19 se alastra de maneira mais agressiva."

Dacoregio diz que cerca de 20% dos pacientes que contrai o vírus precisa ser internado. Deste número, em média, 5% precisa de UTI.

"Como o número de contágios é grande, o número de pacientes que precisa de reanimação também é. Consequentemente é muito superior a capacidade de atendimento de todos os serviços de saúde no mundo. Nenhuma estrutura está preparada para uma doença com uma abrangência tão grande com índice tão alto de mortalidade."

Hoje, 22,8% da população italiana tem mais de 65 anos. É um país de idosos e são estas as maiores vítimas do coronavírus. A maior parte dos óbitos, 42,2%, tinha entre 80 e 89 anos. 32,4% tinham entre 70 e 79 anos.

Segundo balanço divulgado ontem, a Itália tinha 1.809 mortes por coronavírus.

Mesmo estando em contato com pacientes contaminados todos os dias ela não se assusta.

Não tenho medo, mas tenho quase certeza absoluta que em algum ponto da história eu vou acabar tendo a doença porque uma parte dos meus colegas teve ou está tendo, mas todos estão se saindo bem.
Mariana Dacoregio, médica brasileira

Pelo menos 2.000 médicos e enfermeiros que atuam na Itália já contraíram a doença. O número representa cerca de 8% dos casos totais.

No contato diário com os pacientes as histórias são muitas. Maria Cristina Settembrese, enfermeira italiana do setor de infectologia do Hospital San Paolo, em Milão, conta que chorou poucas vezes nos anos de profissão e que agora as lágrimas são frequentes.

"Outro dia eu tinha acabado de tirar o uniforme quando a filha de um paciente telefonou dizendo que o pai estava desesperado porque não achava os óculos e não conseguia mandar mensagens e nem ver a foto do neto. Eu me vesti de novo, fui lá, encontrei os óculos e entreguei a ele. Vocês não podem imaginar como ele estava feliz em ver a foto do neto."

Desde que a epidemia começou as noites e os dias são mais longos para quem está no setor de infectologia. Deste período, uma das coisas que ficará na memória da enfermeira são os olhares. É o único modo que médicos e enfermeiros têm para comunicar.

A equipe médica com o rosto coberto e os pacientes que precisam de respirador com o capacete. "E conseguimos dizer tudo. Quando os pacientes entram em crise eu toco a perna deles porque o resto do corpo está sempre cheio de fios."

A foto da enfermeira Alessia Bonari com as cicatrizes deixadas pelo uso contínuo da máscara viralizou. No seu perfil no Instagram, ela descreve as dificuldades cotidianas para tentar sensibilizar os menos temerosos. Os dispositivos de proteção machucam.

A enfermeira Alessia Bonari, que postou foto com as cicatrizes deixadas pelo uso contínuo da máscara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A enfermeira Alessia Bonari, que postou foto com as cicatrizes deixadas pelo uso da máscara
Imagem: Arquivo pessoal

Uma vez vestidos, médicos e enfermeiros não vão ao banheiro e não bebem água por até 6 horas. Ela pede que as pessoas façam a parte delas.

"Estou cansada física e psicologicamente. Eu e os meus colegas. Peço a todos que não façam do nosso um esforço inútil. Sejam altruístas. Nós jovens não somos imunes. Nós podemos contrair o vírus e transmiti-lo aos outros. Eu não posso me dar ao luxo de ficar doente. Tenho que trabalhar."

Gestos de solidariedade demonstram o reconhecimento da população pelo trabalho desenvolvido pelos médicos e enfermeiros.

Na região de Brescia restaurantes e pizzarias, hoje fechados ao público, enviam comida e pizza para os médicos que estão trabalhando.

A médica brasileira Dacoregio conta que na região onde mora as famílias decoraram as casas por fora com cartazes escritos "andrà tutto bene" (tudo ficará bem, em italiano).

"Para os brasileiros que ainda não entenderam o porquê das medidas, é importante lembrar que para você, jovem, a doença pode ser só uma gripe, mas não é assim para seus pais e seus avós. O mais importante para a gente aprender com isso é que por mais que a doença não atinja a gente ou os nossos filhos, nós precisamos pensar no outro. É uma doença que convida a gente a pensar na sociedade."