Covid-19: Clamor por cloroquina pressiona médicos e abre discussão ética
Resumo da notícia
- Médicos relatam que tem crescido o número de pacientes que pedem a substância ao ouvir o diagnóstico de covid-19
- Nenhum estudo científico comprovou sua eficácia de forma conclusiva no tratamento da doença
- Código de Ética Médica determina que médico "aceitará as escolhas de seus pacientes"
- Especialistas questionam ética de receitar substância sem comprovação científica
Toda a publicidade envolvendo a cloroquina tem tornado ainda mais complexo o tratamento de infectados pelo coronavírus no Brasil. Médicos que estão na linha de frente no atendimento contam ao UOL que têm sido pressionados pelos próprios pacientes a administrar um remédio que ainda não tem eficácia comprovada.
A cena tem sido cada vez mais comum em hospitais que concentram casos de covid-19: a pessoa é diagnosticada com a doença, o médico explica o tratamento e, de imediato, ouve do paciente se não dá para "tentar a cloroquina".
"Tem acontecido, sim, as pessoas pedem [a cloroquina]", relata o infectologista Gerson Salvador, diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). "Já aconteceu de paciente chegar em situação de gravidade, precisar de procedimentos médicos [intubação ou ventilador pulmonar], e o paciente refutar e pedir a cloroquina", conta.
A situação é uma novidade dos tempos da informação (e da falsa informação): o paciente ouve tanto falar em cloroquina que passa a mostrar predileção pelo remédio, mesmo que a ciência não concorde e aponte efeitos colaterais graves.
Na discussão rasa, a droga é defendida por muitos como eficaz no combate ao coronavírus, e entusiasma até o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Até hoje nenhum estudo científico comprovou sua eficácia de forma conclusiva.
"Não é incomum o paciente se portar assim, e é um grande problema. A gente passa a ter esse enfrentamento, de o paciente dizer 'como o senhor não vai fazer nada?'", reforça Jean Gorinchteyn, médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
"Precisamos lembrar que esses remédios estão relacionados a estudos que ainda estão em andamento e que seria muito precoce utilizá-los em pacientes que não sejam graves", explica.
O cenário pressiona o médico entre a cruz e a espada ou, neste caso específico, entre a cloroquina e a ética. Um dos "princípios fundamentais" do Código de Ética Médica, o XXI, diz que no processo de tomada de decisão o médico "aceitará as escolhas de seus pacientes" no que diz respeito a procedimentos e tratamentos, mas desde que tais escolhas sejam "adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas".
Para administrar qualquer remédio a qualquer paciente, um médico precisa se basear em aspectos clínicos e éticos, explica Gerson Salvador.
"Precisamos sempre pesar o benefício e o risco. A cloroquina tem efeitos colaterais sérios, e nenhum estudo até agora mostra sua eficácia [contra a covid-19]. Temos inúmeras provas de maleficência e nenhuma prova de beneficência. É antiético oferecer uma intervenção que tem uma chance maior de fazer mal do que fazer bem ao paciente", defende.
Jean Gorinchteyn demonstra a mesma preocupação. "O médico precisa entender que deve ter cuidado ao aplicar drogas como esta porque elas não são inofensivas. Aí eu pergunto: como fica para este mesmo médico se amanhã os familiares se voltarem contra ele, questionando o uso da cloroquina? Qual trabalho científico embasou a conduta? Nenhum", adverte.
Parecer sobre cloroquina contradiz Código de Ética
O Conselho Federal de Medicina (CFM) admite que "não há evidências sólidas de que a cloroquina e a hidroxicloroquina tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento". Mesmo assim, na semana passada emitiu um parecer no qual endossa o uso das drogas em pacientes de covid-19 em três situações específicas.
O parecer se desencontra com o artigo 113 do Código de Ética Médica, que veda ao médico "divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente".
O parecer inclui entre as suas conclusões uma espécie de salvaguarda aos médicos que usarem cloroquina em pacientes de covid-19. Por causa "da excepcionalidade da situação", tal uso não configura infração ética enquanto a pandemia durar.
"O presidente do CFM rasgou o Código de Ética Médica ao endossar o uso da cloroquina sem evidência científica. É uma decisão antiética, que inclusive traz a ideia de uma falsa solução. O paciente refuta o tratamento que tem indicação precisa em troca de uma ilusão que virou peça de propaganda política", critica Gerson Salvador em nome do Simesp.
O CFM foi questionado sobre as recomendações conflitantes entre seu parecer e o Código de Ética Médica, mas não se pronunciou até a publicação deste texto.
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