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Nicolelis: buscar doentes em casa é solução para frear covid-19 no interior

O médico e neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Consórcio Nordeste - Divulgação
O médico e neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Consórcio Nordeste Imagem: Divulgação

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

14/05/2020 04h00

Coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste, o neurocientista Miguel Nicolelis afirma que a disseminação da covid-19 pelo interior da região precisa ser combatida com equipes de saúde indo diariamente à casa de pessoas com suspeita de infecção pelo novo coronavírus. Dessa forma, evita-se que o vírus se espalhe em áreas pobres.

"Esse combate tem de ser feito por brigadas emergenciais de saúde, com médicos, agentes, enfermeiros, ou seja, toda equipe de medicina da família que é tão enraizada no Nordeste. Precisam ir até as casas, identificar quem está doente; se puder, testar rapidamente as pessoas, isolá-las, ver os contatos sociais. Essas cidades só vão ganhar essa guerra na trincheira", diz, em entrevista ao UOL. As brigadas citadas pelo neurocientista seriam encabeçadas por médicos brasileiros formados no exterior.

Segundo o Consórcio, o Nordeste já tem 1.119 municípios com casos de covid-19 confirmados, o que representa 63% das cidades da região.

Diante de um cenário marcado pela falta de testes e demora na entrega dos resultados, o comitê científico desenvolveu um aplicativo (o Monitora Covid-19) para que as pessoas com sintomas informem em tempo real as autoridades.

"O que estamos preconizando primeiramente é o uso do nosso aplicativo. Ele dá uma visão dos casos que estão surgindo e a real incidência da doença, com uma vantagem: é em tempo real, muito mais rápido do que a notificação oficial — que ainda é um número subnotificado", pontua Nicolelis.

Com essas informações, o cientista acredita ser possível agir rapidamente para conter o avanço da doença. "Quando um paciente chega aos hospitais é tarde. Não pode deixar chegar uma avalanche de gente. À medida que [a doença] se alastra, você tem de combater a interiorização nas trincheiras. E temos muito claro quais são essas trincheiras, que são as sub-regiões, os municípios com menos de 50 casos. Se agir nesse momento, quando ainda são 10 ou 20 casos, é possível parar o crescimento exponencial."

Em reportagem publicada no último dia 2, o UOL revelou que o novo coronavírus atua de forma silenciosa em cidades mais pobres do Nordeste. A doença só é descoberta quando a pessoa morre.

Médicos brasileiros formados no exterior

Um dos desafios para implantar essa brigada é a resistência do CFM (Conselho Federal de Medicina), entidade contrária à resolução do Consórcio que sugeriu aos governadores do Nordeste a contratação de médicos brasileiros formados no exterior, mas que aguardam a realização da prova de revalidação — o chamado Revalida, que não ocorre desde 2017. A Universidade Estadual do Maranhão foi a primeira a lançar edital de revalidação emergencial de diplomas.

"Infelizmente o CFM não está entendo a gravidade do que está acontecendo, e nem tem uma visão ideológica focada em entrar numa guerra para salvar vidas. As questões corporativas estão falando mais alto. É uma emergência, não uma situação normal. É algo que nunca ocorreu no Brasil, nem no mundo, em 100 anos", opina Nicolelis.

No último dia 30, o CFM entrou com uma ação na Justiça da Bahia, solicitando a "suspensão imediata" dos efeitos da resolução do Consórcio Nordeste que criou a brigada emergencial. Para o CFM, a medida de revalidação de diplomas médicos "é potencialmente lesiva à saúde da população". O órgão pede que os processos de revalidação sigam sendo feitos sob coordenação do Ministério da Educação.

Para justificar a contratação imediata, Nicolelis cita que a região tem um déficit de profissionais. "O Nordeste tem 15 mil médicos na atenção primária. O Brasil tem 2,2 médicos para cada mil habitantes. O Nordeste tem 1,5, já sai em desvantagem nessa guerra. E existem 15 mil médicos brasileiros diplomados à espera de uma chance para revalidar o diploma."

"Estamos em uma guerra! Você só vai conseguir ganhar essa briga se ampliar significativamente o número de profissionais de saúde. Numa emergência, tem que ter medidas audaciosas, ser criativo. São médicos brasileiros formados em faculdades de Medicina que são conhecidas no mundo e estão registrados nos seus países. Não há nada do Código de Hipócrates que proíba", reclama.

Espalhamento da covid-19 por rodovias

Ainda segundo Nicolelis, o espalhamento do novo coronavírus pelo Nordeste segue um trajeto de estradas que ligam as principais cidades da região. O mesmo ocorreu durante a epidemia de dengue anos atrás. "Fizemos vários estudos que mostram isso", pontua.

Hoje, o comitê científico avalia algumas áreas que são consideradas fundamentais para controlar a doença na região. O neurocientista informa quais:

"A fronteira oeste do Rio Grande do Norte, em Mossoró, Assu, Baraúnas, onde o número de casos é pequeno, mas já é capaz de ocupar perto do total de leitos UTI. Temos o extremo oeste de Pernambuco; o sul da Bahia, que é monitorado continuamente; o oeste do Maranhão, em Imperatriz, na fronteira com o Pará. Temos também as maiores cidades, como Campina Grande (PB), monitorada o tempo inteiro, porque é um entroncamento muito grande; e Feira de Santana (BA), que é mais populosa."

Nos próximos dias, o comitê vai apresentar uma pesquisa sobre a disseminação do novo coronavírus para ajudar os prefeitos das pequenas cidades da região. "Estamos fazendo estudos para dar subsídios ao interior, mas não estão prontos ainda. As computações são muito intensas, são dias para calcular", avisa.

Nicolelis afirma que os governadores do Nordeste estão tomando decisões baseados em informações transmitidas pelos cientistas do comitê. Ele elogia essa relação com os gestores públicos. "A região está dando um exemplo de como vencer uma situação dessas. Eu tenho muito mais problemas aqui do que no Sudeste, para que isso ocorra", finaliza.