Atrasos nos dados podem gerar "efeito cascata" e impactar resposta à covid
O adiamento de três horas por parte do Ministério da Saúde na divulgação do boletim diário com o número de diagnósticos, mortes e pacientes recuperados da covid-19 acendeu um sinal de alerta para médicos e especialistas que têm demonstrado preocupação com recorrentes atrasos na publicação dos dados oficiais.
A pasta anunciou "problemas técnicos" às 20h10 de hoje, mais de uma hora depois do prazo oficial para a publicação dos números, às 19h. Há ao menos dez dias eles têm sofrido atrasos que variam de 30 minutos a 1 hora e 20 minutos.
Mais cedo, às 17h56, o Ministério da Saúde também cancelou entrevista coletiva com a equipe técnica, marcada para as 17h30 — no mesmo horário, ocorreu uma fala do chefe da Secom, Fabio Wajngarten, e do secretário de Publicidade, Glen Valente.
Em maio, a pasta já havia ampliado o intervalo de dias para atualização de dados de seu Boletim Epidemiológico.
Às 22h, o governo federal confirmou 1.349 novas mortes em 24 horas no Brasil, ou um a cada 64 segundos, o maior número já contabilizado nesta pandemia. Com isso, o total de óbitos chega a 32.548. Após a inclusão de 28.633 novos diagnósticos, o país contabiliza 584.016 casos em todo o seu território.
O balanço divulgado diariamente no início da noite consiste de um inventário de casos e óbitos confirmados pelos governos estaduais e repassados ao Ministério da Saúde. Em março, a pasta havia esclarecido que os dados eram enviados até o início da tarde e consolidados às 16h.
Ao UOL, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta explicou hoje que, para a elaboração do boletim, "em tese, seria só somar estes números [dos estados], listar por ordem alfabética e somar".
Sobre os atrasos, opinou: "O grande problema é talvez perder a credibilidade e passar à população a impressão de que estão escondendo números. Seria o pior efeito deste tipo de coisa, a confiança da população quanto à veracidade e a confiabilidade dos números".
Especialistas temem "apagão técnico"
Médicos e pesquisadores têm criticado os recorrentes atrasos na divulgação dos números, que dificultam o entendimento de como a pandemia tem se comportado no país e a avaliação dos esforços do governo federal para contê-la. A situação de hoje foi vista como um sinal de alerta.
"É um mau indício em um momento crítico em que precisamos de informação. E abre até a perspectiva de haver algum tipo de manipulação ou ocultação de dados, de retardo de alguma notícia desagradável", ponderou Evaldo Stanislau, médico infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
"Gostando ou não, confiando ou não, os dados do Ministério da Saúde são os oficiais do Brasil. O primeiro problema é ficar sem dado oficial. Isso tem um impacto na assistência, porque muda o planejamento e a tomada de decisão de gestores que estão monitorando esses dados. Então, também causa um efeito cascata", completou.
"É sempre importante ter uma comunicação direta, a mais próxima possível do tempo real para ter também uma resposta adequada [à pandemia] em tempo real", explicou Natanael Adiwardana, infectologista do Hospital Emílio Ribas.
"Não consigo avaliar a real intenção por trás disso, mas se a comunicação não se dá de forma ágil e transparente, isso com certeza atravanca ainda mais o debate sobre o assunto e a formação de políticas públicas. Se o Ministério pudesse atualizar os dados mais rapidamente e de forma mais transparente, traria uma dinâmica muito melhor. Isso [o atraso] pode nos dar uma falsa sensação do estado atual das coisas", disse.
Já para o neurocientista e coordenador do comitê cientifico para covid-19 do Consórcio Nordeste, Miguel Nicolelis, é "simplesmente estarrecedor" o atraso na divulgação dos dados. "Não bastasse a subnotificação, agora nem os dados 7 vezes subnotificados vamos ter? Onde no mundo algo assim aconteceu no meio de uma pandemia?", questionou.
Para Paulo Lotufo, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, o atraso na divulgação visa conter a repercussão negativa que grandes aumentos nos números têm na cobertura da imprensa.
"Estão tirando para não sair no jornal. É de certa forma uma censura. Eles tentam segurar ao máximo. A saída para isso é basear [o noticiário] direto nos dados das secretarias", denunciou.
"O Ministério da Saúde está sem ministro, com dois ministros que saíram em menos de um mês. Essa é essa situação complicada. O nosso risco agora é o de um apagão técnico. E acho que é isso que está acontecendo", afirmou Bernadete Perez, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
"Eu não sei ao fundo [o que houve hoje], mas a gente já vem discutindo essa possibilidade de apagão técnico no ministério pelo esvaziamento dos cargos técnicos", pontuou, referindo-se à formalização do general Eduardo Pazuello hoje como ministro interino da Saúde.
A confirmação ocorre 19 dias depois da saída de Nelson Teich da pasta, que assumiu o cargo no lugar de Mandetta.
Para Perez, esse cenário se soma à falta de resposta do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) no enfrentamento à pandemia. "Há uma negação da ciência, das evidências, e não há coordenação da resposta à epidemia com estados e municípios. Ao contrário, seguem contradizendo as medidas adotadas."
A preocupação é de certa forma compartilhada por Helio Bacha, infectologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
"Eu estranho muito um Ministério da Saúde que não tenha um interlocutor médico, isso por si só já é uma sinalização grave em um momento tão importante. Nunca vi um Ministério da Saúde tão despreparado. A transparência desses números causa apreensão nas pessoas e nos técnicos. Soltar os dados a esta hora? Parece que estavam discutindo", avaliou.
Procurado pelo UOL, o Ministério da Saúde não enviou esclarecimentos sobre as ocorrências de hoje. Se enviado, o posicionamento será incluído neste texto.
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