Telemedicina em favelas facilita atendimento a moradores durante pandemia
O medo do novo coronavírus fez com que a mãe da auxiliar de limpeza Gláucia Gois, 45, abandonasse o tratamento contra a depressão —ela convive com a doença desde meados dos anos 2000, mas, segundo a filha, os sintomas se intensificaram após a morte de seu irmão, há um mês. Gláucia, a mãe e a avó moram na comunidade de Mãe Luiza, em Natal (RN). "Minha mãe não saía do quarto, não falava com ninguém. A gente sabia que precisava aumentar a dose do remédio, mas por causa da pandemia, estava apreensiva em tirá-la de casa", conta a filha.
Foi quando Gláucia soube, por uma amiga, que a ONG SAS Brasil realizava consultas médicas via telemedicina em comunidades pelo país. O serviço de telemedicina foi aprovado no Brasil durante a pandemia de coronavírus. "Nunca tive dinheiro para pagar médico, comprar remédio. Esse atendimento foi uma bênção", disse a auxiliar de limpeza.
A iniciativa da ONG acontece em parceria com líderes comunitários, que ficam responsáveis por divulgar o contato aos moradores de favelas de mais de cem cidades do Brasil. Além do serviço telefônico, em três delas —São Paulo, Rio e Natal—, há voluntários que se prontificam a ir até as casas das pessoas quando há necessidade.
Foi o caso de Gláucia —ao UOL, ela disse que não tem medidor de pressão nem de glicemia em casa, e que o médico, via telemedicina, pediu esses dados. Enfermeiras voluntárias "cheias dessas roupas de proteção, por causa da covid" foram até sua casa e fizeram o atendimento.
"Minha mãe começou a fazer terapia virtualmente, mas ela está muito irritada, ainda. Diz que não gosta de psicólogo, tá muito difícil. Marcamos, então, uma consulta com um psiquiatra para que ela possa ser medicada", explica a filha. A avó de Gláucia, contudo, sofre de um quadro leve de alzheimer e tem diabetes."Minha avózinha já é mais carinhosa, brincou com o médico na ligação de vídeo, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo. Depois, eu expliquei. As duas foram muito bem atendidas. Agora, minha avó aguarda a consulta com um geriatra, que está marcada para a próxima semana".
A ideia é que o contato do grupo seja espalhado apenas entre quem mora nas favelas, para que pessoas mais favorecidas economicamente não se aproveitem do atendimento gratuito. Segundo a organização, mais de 12 mil pessoas já foram beneficiadas, e apenas 3% dos pacientes precisaram de atendimento hospitalar.
Também em Natal, Rayane dos Reis, de 30 anos, fez uso do serviço pela primeira vez durante a pandemia. Ao registrar todos os sintomas de covid-19, relembra que, sozinha, se isolou com o filho de seis anos —também possivelmente acometido pelo vírus.
"Ele estava na casa do pai, que me ligou e disse que meu filho não estava se sentindo bem; que estava com diarreia, muita febre e dor no corpo. Na hora, toquei meu marido e meu filho mais velho de casa. Fiquei isolada com ele e, depois de dois dias, comecei a ter dores de cabeça muito fortes e febre de 39 graus. Fazer o que, eu sabia que ia pegar, mas ia deixá-lo onde? Sou mãe, e minha preocupação, o tempo todo, foi com ele, mesmo no momento em que me senti pior", conta.
"Conversei com uma amiga, e ela me passou o número do pessoal do SAS Brasil. Pelo WhatsApp, os atendentes fizeram meu cadastro e o do meu filho. Pediram documento, analisaram os sintomas e colocaram em uma fila de espera. Mas, no mesmo dia, ele já foi atendido. A pediatra ligou e falamos por vídeo. Então, ela receitou umas gotinhas de dipirona para abaixar a febre dele e um soro, para amenizar os efeitos da diarreia", relembra.
Rayane já cumpriu os 14 dias de isolamento ao lado do filho. No próximo dia 23, vai fazer o teste para confirmar a infecção pelo novo coronavírus. Os sintomas, ela conta, amenizaram —mas as dores de cabeça continuam fortes. Segundo ela, os atendentes ligam a cada dois dias para saber como andam as coisas.
"Já vieram duas vezes aqui medir minha saturação. A equipe é muito cuidadosa. Como ainda estou me sentindo um pouco fraca, continuo sozinha com meu filho em casa. Morro de medo de sair e contaminar outras pessoas. Essa doença é danada, nunca me senti tão mal na vida. Não dá para dizer que não é", conta.
Covid já marca 700 casos de atendimento
A médica emergencista e fundadora da SAS Brasil, Adriana Mallet, afirma que são 14 especialidades médicas disponíveis na plataforma —além de fonoaudiologia, fisioterapia, nutrição e psicologia. Segundo a especialista, os funcionários in loco entram no circuito quando o paciente não tem familiaridade com tecnologia ou quando há a necessidade de medir sinais vitais do paciente. Ao fazerem o cadastro, os pacientes são colocados em uma fila de espera de acordo com a gravidade dos sintomas apresentados. O atendimento não é exclusivo a quem tem sintomas de covid-19. "Há outras doenças que continuam acontecendo paralelamente, não podemos esquecer delas", diz.
Ainda assim, ela afirma, o número de pessoas que apresentaram os sintomas do vírus já chegou a 700. "Em quadros mais severos de suspeita de covid-19, deixamos o oxímetro na casa do paciente. Hoje, já distribuímos mais de cem aparelhos que medem a saturação. O quadro de um paciente de covid se agrava muito rápido, por isso a equipe ensina o familiar a medir a oxigenação, e esses pacientes são contatados mais de uma vez por dia", afirma.
Até o momento, explica Adriana, a ONG não tem registro de óbitos. "Os pacientes cujos casos se agravaram foram encaminhados ao hospital a tempo de que o tratamento fosse realizado com sucesso", diz. Os médicos e atendentes voluntários disponibilizam duas horas por dia para o projeto, segundo ela. Os especialistas que se dispõem a trabalhar por mais horas, esses sim, são remunerados —recebem R$ 30 por consulta.
Caso grave de covid revertido
O primeiro atendimento de Marisa Ribeiro, de 36 anos, ao sentir falta de ar intensa, foi do SAS. Ela foi diagnosticada com o novo coronavírus e, depois da consulta via telemedicina, precisou ser internada em um hospital próximo à comunidade de Jardim Colombo, em São Paulo. Depois de um mês reclusa na unidade, voltou para casa e, desde então —a alta aconteceu no fim de maio—, recebe o contato de profissionais do SAS com frequência.
"Vieram me ver, entraram em contato comigo, conversaram bastante, mediram minha temperatura para saber como eu estava. Tudo isso depois da alta. Quando vim para casa, eles ligavam direto para o meu marido para saber como eu estava", afirma.
A fala, ainda ofegante, tem tom baixo. Ela explica que ainda se sente muito cansada quando realiza atividades domésticas. "Os médicos disseram que meu pulmão ainda está comprometido, mas que logo vai passar". Quem indicou a ela o serviço da ONG foi a cunhada e, afirma, vai voltar a fazer as consultas por lá —Marisa trata o lúpus há dez anos. "Se não fossem eles, como eu iria para o hospital? Eu morreria. Sou muito grata."
Regulamentação da telemedicina
O CFM (Conselho Federal de Medicina) define a telemedicina como o exercício da medicina, mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças, lesões e promoção da saúde. A conversa pode ser em tempo real ou não.
Em março, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que regulamenta o atendimento médico à distância durante a pandemia do novo coronavírus. Para evitar a propagação da doença, esse tipo de atendimento está sendo feito nas redes pública e privada de saúde.
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