Do medo ao alívio: equipe fala do hospital do Anhembi, que reduzirá leitos
Passos apressados e bipes intermitentes deixaram de caracterizar o dia a dia e se tornaram lembranças para profissionais da saúde que trabalham no hospital de campanha do Anhembi, em São Paulo. A rede, administrada por duas empresas diferentes, terá um de seus núcleos desativados no próximo dia 31.
A área localizada no pavilhão chegou a gerenciar 561 leitos e atingir 70% de ocupação em seu momento de pico. Dez dias antes da data prevista para o encerramento das atividades, o HMCamp havia recebido 3.240 pacientes.
No último dia 16, o prefeito Bruno Covas (PSDB) anunciou que serão disponibilizados 310 leitos a partir do dia 1º.
"A sensação é nova: é de missão cumprida, mas de nostalgia. Vivemos histórias aqui, e esse momento foi um divisor de águas na minha vida. Nos emocionamos, salvamos vidas, nos apegamos a pacientes que não queriam ir embora e fomos contemplados com cartas de agradecimento", relembra a enfermeira Carla Carin Casaes.
Dentro do espaço, que abriga o setor de enfermaria — destinado a pacientes de baixa e média complexidade — e uma UTI de estabilização, o clima quem rege é a cidade: na penúltima quarta-feira de julho, o calor atípico para um inverno paulistano fazia a máscara n95 irritar a pele.
Carla diz ter se acostumado ao EPI pesado. Ela chegou ao HMCamp um dia depois da chegada do primeiro paciente e, hoje, chega à marca de 2.640 altas.
O silêncio, vez ou outra, é quebrado pelo passar de carros na Marginal Tietê, rodovia que permeia o espaço, e pelos aviões que chegam e partem do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Cantores voluntários, periodicamente, realizam apresentações de música para pacientes e funcionários.
São voluntários, ainda, que doam protetores auriculares aos pacientes — eles recebem um kit com tampões de ouvido, toucas, meias, luvas e produtos para higiene bucal assim que assinam a internação.
O protocolo de entrada é realizado quando a ambulância chega à entrada do pavilhão — o hospital de campanha é um espaço a portas fechadas, que só recebe pacientes transferidos de outras unidades de saúde. Ali, é feita uma triagem simples que identifica a gravidade do caso — casos leves são encaminhados para a enfermaria, enquanto casos menos estáveis são estabilizados na UTI adaptada.
O espaço de estabilização já teve 48 leitos ativos — hoje, apenas 20 estão disponíveis e, na última quarta-feira (22), quando o UOL visitou o hospital, não havia pacientes internados ali.
O gerente médico do HMCamp Anhembi, Emerson Silva, afirma que o pico de movimento aconteceu em maio, mês em que 70% dos quase 600 leitos estavam preenchidos.
"A gente sentia uma insegurança, um medo do futuro, era algo inexplicável. A sensação ainda existe porque não nos livraremos do coronavírus tão facilmente. Só que, naquela época, quando chegamos a receber 80 pacientes em um dia, a gente precisava agir antes de qualquer coisa; agir rapidamente e com cuidado, para proteger a nós e aos outros", afirma. Nas últimas duas semanas, a média de internação é de 15 pacientes por dia.
Silva trabalhava em um hospital "sete dias por semana" e ganhava mais do que ganha como gestor do hospital de campanha. Ainda assim, ele explica, o desafio de gerenciar uma unidade de apoio em meio a uma pandemia fez com que largasse tudo.
O mesmo fez Carla, que atuava como gerente assistencial do núcleo. "Fiquei receosa, afinal, meu pai é idoso, faz parte do grupo de risco. Mas arrisquei pelo desafio que esse momento implica à profissão. E, quando cheguei, entendi que aqui dentro estou mais protegida do que na rua."
De fato: a cada passo, funcionários precisam realizar protocolos de segurança e higienização. Além do macacão cirúrgico, eles são cobertos por dois aventais, uma touca, luvas e óculos de pressão — que, quando vem o calor, embaça e faz suar.
Entre as histórias que Carla conta, está a de Manoel Messias, 56, que há nove dias está internado no hospital de campanha. Festeiro, brinca com os enfermeiros e celebra cada alta dos colegas de box. A dele, conta, não deve passar do fim de semana.
Messias foi diagnosticado com covid-19, encaminhado de um hospital da rede pública para o Anhembi e, na segunda-feira (20), viu seu quadro se agravar. Ele precisou ser estabilizado na UTI, onde passou algumas horas.
"Eu sentia muita falta de ar e a minha febre estava tão, mas tão alta, que eu comecei a alucinar. Fiquei zoadão, aéreo, mas me lembro de tudo. Eu fui inocente, não sabia que ia para a UTI. Comecei a me sentir mal e ouvi que "me levariam a um lugar para que me sentisse melhor". Lá, conversando com o enfermeiro, entendi que estava na UTI. Racionalizei aquilo, como tudo que faço na vida, e tentei não me desesperar", afirma.
Messias relembra quando ouviu do primeiro médico que o atendeu que seria encaminhado a um hospital de campanha. "Tive medo. Disse a ele que, se achasse necessário, eu pagaria um hospital particular, já que não tenho convênio. Mas o médico me sossegou, disse que o protocolo é o mesmo e que eu poderia confiar. Quando cheguei aqui, que surpresa! Esse lugar é maravilhoso, as pessoas são maravilhosas!"
Na tentativa de humanizar o contato entre os funcionários do hospital e os pacientes, cada profissional de saúde do HMCamp tem seu nome e função escritas no avental: assim que se paramentam, recebem a identificação. Sob ela, eles podem colar a própria foto; assim, os pacientes conseguem conhecer com quem conversam dia e noite.
"Mesmo com a foto, é pouco, sabe? Quero ver o rosto dos anjos que me curaram, quero conhecer e agradecer a cada um. Por isso, já marquei uma cervejinha com todo mundo depois que isso passar", diz Messias.
Messias não dorme, conta à reportagem. Diz que o sono fica desregulado e que o tempo passa de maneira diferente; relembra a luz que entra pelas janelas do pavilhão toda manhã — ele, geralmente, está acordado e acompanha o penetrar de cada raio de sol. Ao amanhecer, afirma, lembra da mulher e da filha, com quem mora, e por quem chora de saudade.
"Saudade, ah. Claro que vamos sentir. Já estou sentindo, inclusive", afirma Carla.
Junto aos bipes, aos passos apertados, as mais de três mil histórias às quais Carla teve acesso serão guardadas na caixinha de lembranças da vivência em um Hospital de Campanha. Para ela, a mais gratificante experiência da carreira.
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