'Já intubei paciente no corredor': a rotina em hospital de covid no RJ
Dois pacientes com covid-19 são transferidos para fazer exames e não voltam mais. Um outro homem, que estava internado na mesma sala, entra em desespero: "Eu vou morrer!", repete aos gritos, enquanto é consolado por uma enfermeira, que apenas segura a sua mão.
Em outro dia de luta entre a vida e a morte em meio a uma pandemia que já matou mais de 300 mil pessoas no país, uma médica se recusa a retirar um paciente morto em cima do vaso sanitário porque não estava paramentada. Ao presenciar a cena, um senhor de 60 anos que também estava internado tenta fugir, mas desmaia no corredor. "Não posso tocar nele, porque a minha esposa está grávida", justificou um segurança, ao se recusar a socorrê-lo.
Histórias como essas fazem parte da rotina do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência contra a covid-19 no Rio de Janeiro. Servidores ouvidos relataram ao UOL risco de contágio, falta de médicos em CTIs e remanejamento de profissionais sem experiência para atuar em unidades de tratamento intensivo.
"Já intubei paciente no corredor", disse uma enfermeira, que se queixa da desativação da sala de estabilização no 5º andar por causa de um problema no teto.
Não tem nem um biombo para tampar. Os pacientes ficam apavorados, porque presenciam uma pessoa agonizando ao lado deles e pensam: 'Eu posso ser o próximo'
Enfermeira do Ronaldo Gazolla
Vídeos, áudios, fotos e relatos desses profissionais obtidos pelo UOL foram encaminhados a infectologistas, que viram risco de propagação do novo coronavírus.
Até ontem (24), a taxa de ocupação da rede municipal na capital era de 92% dos leitos para covid —com uma fila de 137 pessoas aguardando vaga, segundo o Painel Rio Covid-19, da Prefeitura do Rio. Ao todo, são 1.310 pacientes internados —664 deles em UTIs.
Profissionais relatam irregularidades
Sob a condição de anonimato, uma enfermeira com acesso ao CTI do hospital contou que profissionais de saúde sem experiência em unidades de terapia intensiva estão sendo remanejados para essas unidades, onde um erro de avaliação pode ser determinante para quem trava uma luta entre a vida e a morte.
"Mesmo sem experiência ou treinamento, as profissionais de saúde são cobradas. O mais grave é que nem todo mundo tem paciência para ensinar. Teve uma vez que uma dessas enfermeiras estava colocando o oxigênio de maneira inadequada em um paciente", diz ela.
A informação foi confirmada por um médico da unidade, que preferiu não ter a identidade revelada.
Estão colocando técnicos de enfermagem que estavam acostumados apenas a trocar fralda e ferimento nos CTIs. São pessoas que não sabem manusear um paciente intubado. Os profissionais estão desesperados. E os pacientes estão morrendo
Médico do Hospital Ronaldo Gazolla
Informado sobre esses relatos, o infectologista Edimilson Migowski reforçou a importância do treinamento para atuação nos CTIs, embora tenha ponderado que isso não é obrigatório.
"É desejável que [os profissionais de saúde] tenham sido treinados. Ou que tenham a supervisão de alguém com experiência nesse setor. Lidar com paciente criticamente enfermo não é para amadores. Demanda realmente um treinamento de longo prazo, que não se consegue infelizmente de uma hora para a outra", analisa.
'Eles não mostram aqui dentro'
Fotos e vídeo mostram dormitório destinado à enfermagem —um quarto no 5º andar do hospital—, com ar-condicionado central e sem janelas para circulação de ar. O espaço tem cerca de 15 beliches próximos uns aos outros, distribuídos em área de cerca de 15 m².
"Quando tem que mostrar [as instalações do Ronaldo Gazolla para a imprensa], é tudo bonitinho", diz uma profissional de saúde, em conversa gravada no elevador da unidade.
"É lógico, né? Se vier na senzala... Eles só mostram a frente do Gazolla, não mostram aqui dentro", responde uma colega de profissão.
"Ali, não tem distanciamento. O ar-condicionado não tem manutenção e a ventilação não é eficaz, porque não tem janela. As camas são coladinhas umas nas outras. Em um plantão, duas enfermeiras precisaram dormir no mesmo colchão. A maioria das profissionais de saúde pegou covid ali no dormitório", afirmou uma profissional de saúde, que pediu para não ser identificada.
Risco de contágio
A reportagem exibiu parte do material a Migowski, que comentou as irregularidades sob a condição de que não fosse informado a ele qual era a unidade hospitalar.
Chama a atenção a proximidade entre as camas de beliche, com menos de um palmo de distância uma da outra. Outro aspecto é o ar-condicionado central e a ausência de janelas nesse recinto
Edimilson Migowski, infectologista
Ele vê como problema uma possível falta de higienização desse tipo de ar-condicionado, fato relatado pelas enfermeiras.
O especialista também observou que as roupas de cama não são padronizadas. Isso indica que não foram fornecidas pelo hospital e pertencem aos próprios profissionais de saúde, aumentando o risco de contágio.
"Provavelmente, na hora de fazer a lavagem dessa roupa, acaba sendo feita em casa. Isso pode, em tese, implicar em algum tipo de risco, já que as pessoas de casa podem ser expostas a essa roupa que transitou dentro de um hospital", complementou.
'Vamos adotar as medidas pertinentes', diz procuradora
As fotos e vídeos foram encaminhados pelo UOL ao MPT (Ministério Público do Trabalho), que deu início a uma investigação.
"Vamos adotar as medidas pertinentes para investigar os fatos", afirmou a procuradora Valéria Sá Carvalho Corrêa após ter acesso às imagens. O conteúdo também será encaminhado ao Coren-RJ (Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro).
O que diz a Secretaria de Saúde
A SMS (Secretaria Municipal de Saúde) nega que o dormitório da enfermagem esteja em condições inadequadas e diz que o ambiente está de acordo com o número de funcionários.
O órgão também contesta a alegação de que há pouca ventilação na unidade. Informa ainda que todos os funcionários receberam a segunda dose da vacina contra a covid-19.
"Todos os ambientes de estar da equipe de enfermagem são dimensionados de acordo com o número de funcionários do setor. Nenhum ambiente possui janela aberta, como se espera de ambiente hospitalar, mas todos possuem refrigeração adequada. Cabe ressaltar que a vacinação foi ofertada a 100% dos funcionários da unidade, que já receberam, inclusive, a segunda dose."
A SMS disse que a unidade recebeu visita no dia 25 de fevereiro do Sindicato dos Técnicos de Enfermagem e do Coren-RJ. E, segundo a pasta, não foram constatadas irregularidades.
O órgão também questionou a suposta falta de médicos nos CTIs. "A denúncia não procede (...). Ao contrário do afirmado, há número de plantonistas além do recomendado, com o objetivo de suprir faltas dos profissionais e oferecer assistência de melhor qualidade aos pacientes".
A pasta negou que estejam ocorrendo remanejamentos de profissionais sem experiência. "São profissionais que já estão atuando no combate à covid-19 desde o início da pandemia, em sua grande maioria. A equipe vem recebendo diversos treinamentos desde janeiro, e a lotação, em enfermaria ou CTI, leva em consideração o perfil do profissional."
Questionada, a SMS negou que uma sala de estabilização tenha sido desativada e também contestou a enfermeira ouvida pelo UOL, que disse ter feito intubação no corretor. "Desde janeiro não houve qualquer relato dos profissionais nos livros de ocorrência dos setores sobre uma intubação que tenha sido feita em corredor da unidade."
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