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Bebê de "meio coração" corre contra o tempo após convênio negar cirurgias

O bebê Luiz tem uma cicatriz que lhe corta o peito: ele passou por uma cirugia aos 4 dias de vida  - Arquivo Pessoal
O bebê Luiz tem uma cicatriz que lhe corta o peito: ele passou por uma cirugia aos 4 dias de vida Imagem: Arquivo Pessoal

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

27/04/2021 04h00

Luiz Joaquim tem dois meses e meio de vida e uma cicatriz que lhe atravessa o peito. Mesmo desenganado pelos médicos, aos quatro dias de vida sobreviveu à primeira cirurgia de que precisa para tratar da chamada hipoplasia do coração esquerdo: esse lado do órgão não se desenvolveu na gestação e agora ele precisa de outras duas cirurgias, que, assim como a primeira, foram negadas por seu convênio médico.

Mãe de Luiz, Rafaela Duarte Koritiake, 24, levou um "choque" durante um exame de rotina aos cinco meses e meio de gravidez.

O convênio negou arcar com o custo de R$ 100 mil para cada uma das três cirurgias necessárias - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O convênio negou arcar com o custo de R$ 100 mil para cada uma das três cirurgias necessárias
Imagem: Arquivo Pessoal
"O médico foi ficando apavorado. O exame de 20 minutos durou uma hora e por fim ele deu o diagnóstico", conta a mãe.

Ele disse que havia um problema no coração do bebê e sugeriu um ecocardiograma fetal, que confirmou o problema. A médica falou: 'vão para São Paulo porque se ficar aqui em Sorocaba [interior de SP] não vão conseguir nada'."

"Fiquei derrubada. Disseram que a gravidez era 'incompatível com a vida', mas ele estava mexendo na minha barriga!", recorda-se.

Chorei um dia inteiro, mas no outro dia pensei: tem que existir um tratamento. Fui atrás, conversei com mães, busquei advogado, passei em convênio, no SUS (Sistema Único de Saúde).
Rafaela Koritiake, mãe do Luiz

Bebês de "meio coração", como a hipoplasia é conhecida, precisam passar por intervenções a fim de que o lado direito do órgão, em melhores condições, execute as funções do esquerdo, pouco desenvolvido. Líder médica da Cardiologia Pediátrica do HCor (Hospital do Coração), Ieda Jatene explicou ao UOL que existem diferentes níveis de hipoplasia, incluindo a do menino Luiz, quando o lado esquerdo do coração não tem função.

"É como se a criança só tivesse o lado direito do coração. É preciso fazer pelo menos três cirurgias para tratar essa criança ao longo dos dois, três anos de vida", afirma. Entenda:

  • A primeira das cirurgias, a Norwood, precisa ser feita logo nos primeiros dias: ela serve para construir uma nova aorta (maior artéria do corpo) por meio do qual o sangue passa a ser bombeado para o pulmão.
  • Ainda no primeiro ano de vida, o segundo procedimento (Glenn) "faz um desvio para que parte do sangue que volta ao coração seja levado diretamente para uma artéria pulmonar e não passe pelo coração, diminuindo a sobrecarga sobre ele", diz a médica.
  • Por último, a cirurgia se Fontam --em torno dos três anos de vida-- tem função parecida: "É quando o sangue da parte inferior do corpo é redirecionado para o pulmão", afirma.

"Embora na maioria dos hospitais se faça cirurgia de Norwood como primeiro tempo, aqui no HCor nós fazemos o procedimento hibrido como primeiro estágio e a cirurgia de Norwood e Glenn como segundo estágio", diz Jatene.

Depois que digeri o diagnóstico, eu falei: vou mover montanhas. Já que ele nos escolheu, nós temos de lutar por ele
Rafaela Koritiake, mãe do Luiz

"Convênio quis fazê-lo de cobaia"

Depois de pesquisar sobre a doença, Rafaela descobriu que o hospital brasileiro "com mais condições de executar as três cirurgias" era o Beneficência Portuguesa, na cidade de São Paulo, responsável por trazer a técnica ao Brasil. "É o único com índice de sobrevida acima de 85% para esse tratamento", diz a mãe, que pediu ao convênio para arcar com as cirurgias do filho no hospital referência.

"Desde o diagnóstico eu virei uma leoa para salvar o nosso filho", Rafaela Koritiake  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
"Desde o diagnóstico eu virei uma leoa para salvar o nosso filho", Rafaela Koritiake
Imagem: Arquivo Pessoal

"Eu recebi 'não, não e não': não poderiam salvá-lo. O único 'sim' que a gente teve foi da equipe desse hospital", afirma Rafaela. "Mas o convênio, que não tem índice de sobrevida para essa patologia, quis fazer meu filho de cobaia ao sugerir uma bandagem no coração do Luiz", diz a mãe, que a pedido de seu advogado preservou o nome do plano.

Rafaela, então, recorreu à Justiça para que o convênio bancasse a operação em hospital com experiência no assunto. Na decisão liminar (provisória), o juiz determinou que o convênio arcaria com os custos hospitalares, mas quem deveria pagar pela equipe médica é a família, incluindo o valor das três cirurgias, orçadas em R$ 100 mil cada uma.

O juiz entende que eu quero demais, mas é uma injustiça porque todos os laudos mostram que o Beneficência é o único com experiência para salvar meu filho. O SUS recomendou transplante porque não faz essas cirurgias
Rafaela Koritiake, mãe do Luiz

A médica Jatene diz que transplante é de fato uma opção, "mas o difícil é conseguir doador para uma criança tão pequena e em tempo hábil".

"Transplantar recém-nascido é difícil, não temos cultura em nosso país, muito menos de bebês que faleceram por problemas não cardíacos", diz Jatene, que também é membro da cardiopediatria da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Sem emprego, morando no hospital

Rafaela deu à luz já no Beneficência porque o bebê precisaria estar em observação para a primeira cirurgia, realizada quatro dias depois. Para pagar a primeira operação, recorreu a uma vaquinha virtual.

Agora precisa de mais dinheiro para outras duas cirurgias. A próxima deve ocorrer em um mês, enquanto a terceira operação será aos três anos de idade.

O menino Luiz com os pais Rafaela Duarte Koritiake e o marido Romullo Alves da Silva - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O menino Luiz com os pais Rafaela Duarte Koritiake e o marido Romullo Alves da Silva
Imagem: Arquivo pessoal

Desde que o menino Luiz nasceu, Rafaela vive no hospital. Literalmente. O marido, Romullo Alves da Silva, 25, pediu demissão, fechou a casa em Sorocaba e os dois foram acomodados em um quarto no complexo hospitalar.

"A gente vai morar aqui até a segunda operação. Tomamos banho e comemos. Tenho direito a três refeições; meu marido, não. A gente sai só para pegar uma marmita pra ele e ir à farmácia. Se não, fica aqui em tempo integral. A gente não sabe se lá fora faz frio ou calor", conta.

"A gente tem muito gasto, mas a família ajuda como pode. Se precisar comer uma vez por dia, a gente come, mas o tratamento dele tem que sair", diz ela.

Rafaela conta que ser mãe de primeira viagem é difícil mesmo com "um bebê 100% saudável" e que por isso tem sido "um desafio" passar por isso aos 24 anos. Ainda assim, celebra o amadurecimento dos últimos meses.

A gente evolui de um jeito sob pressão... Desde o diagnóstico, virei uma leoa para salvar o nosso filho, e faria tudo de novo. Mesmo que ele não resista ao tratamento, ele precisar receber todos os cuidados porque ele tem o direito de tentar viver
Rafaela Koritiake, mãe do Luiz

Para ajudar na vaquinha, clique aqui.

Para cuidar da reabilitação física e neurológica de crianças com problemas parecidos no coração, o Hcor passará a oferecer atendimento gratuito em seu Centro de Reabilitação Neurocognitiva e Física. A exigência é que sejam a famílias de São Paulo encaminhadas pela Coordenação de Regulação Municipal, além dos pacientes atendidos pelo hospital que recebem alta após o nascimento.