Copa América transforma Brasil em bomba-relógio para 3ª onda da pandemia
Na iminência de uma terceira onda da covid-19 no país, o Brasil decidiu ontem entrar em tratativas para sediar os jogos da Copa América, a partir de 13 de junho. Sem realizar testes em massa, com a vacinação caminhando lentamente e novas variantes surgindo em território nacional, o evento transforma o país, novamente, em uma bomba-relógio para a pandemia.
Com a competição, entrarão no Brasil atletas de Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela, que deverão circular ao menos em Brasília e por estádios do Nordeste. Os organizadores esperam receber o aval para realizar a final com público.
Com esse cenário, especialistas temem que a terceira onda, que já se desenha no país, chegue de forma mais rápida, transmissível e letal.
Do ponto de vista epidemiológico, um evento desse, como vários outros eventos que têm sido considerados aqui no Brasil como normais, aumenta muito o risco de a gente ter mais cepas, mais pessoas infectadas, até pessoas mais jovens infectadas.
Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto
O professor defende que o Brasil, na verdade, já entrou na terceira onda desde meados de maio e a tendência é só piorar. "Os números brasileiros estão crescendo, inclusive no estado de São Paulo. O agravamento disso, com esse tipo de evento, pode ser muito maior."
Atualmente o país mantém uma tendência de estabilidade no número na média de mortes, embora seja uma média bem alta, com 1.849 óbitos por dia. Alguns governadores do Nordeste já disseram não concordar com o evento.
Entre os estados em vista para sediar os jogos, a tendência é de estabilidade, embora também em patamares elevados. No caso de São Paulo, a média está em 528 mortes por dia.
Celeiro de variantes
O Brasil já havia reportado a identificação das cepas do coronavírus consideradas de preocupação: aquelas originadas no Reino Unido, na África do Sul e em Manaus. Agora, uma nova variante foi identificada no interior de São Paulo e a chamada variante indiana foi encontrada em um viajante que circulou entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Já visto como laboratório para novas variantes, o aumento da circulação com a Copa América liga mais uma vez o alerta.
"O Brasil é o celeiro para o aparecimento de várias cepas, ou até de propagação de cepas consideradas no mundo inteiro como situação de risco. Um evento desse aqui no Brasil, com a lentidão da vacina para proteger a população, só mostra o descaso que está sendo dado para a população brasileira", diz Domingos Alves.
Segundo a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), mais de 30 países das Américas já registraram a circulação de ao menos uma das quatro variantes de preocupação do mundo, além das dezenas de variantes consideradas "de interesse". Países esses com participação na competição.
Ao UOL News, o infectologista Renato Kfouri comparou a Copa América com a realização das Olimpíadas de 2020 em Tóquio. A competição chegou a ser adiada no ano passado e ocorre neste ano no Japão. "Existe o risco. Os testes falham, as vacinas falham. Em tempos de pandemia, a gente não pode concordar com nenhum tipo de aglomeração."
No Japão, no entanto, ainda houve uma preparação de mais de um ano para o recebimento dos Jogos.
São justificativas que sanitariamente não convencem. Você não pode, durante uma pandemia, especialmente em um momento tão duro quanto estamos vivenciando agora, promover qualquer atividade nesse sentido.
Renato Kfouri, infectologista
"Sede bolhas"
Uma alternativa apresentada pela Conmebol para evitar esse aumento da circulação é a criação de "sedes bolhas", em que as equipes só jogariam nas mesmas cidades ou locais próximos e, em teoria, sairiam do hotel apenas para treinar e jogar. A medida, porém, não possui respaldo científico.
"Essas medidas sanitárias que têm sido propagadas são preventivas, não são de maneira nenhuma medidas que garantam a não circulação do vírus", explica Domingos Alves.
Segundo ele, barreiras como essa, em que não há testagem de todas as pessoas, não impedem a passagem dos casos assintomáticos, que são a maioria. Foi o que aconteceu com o brasileiro portador da variante indiana que conseguiu entrar no país, apesar da imposição de medidas.
O vice-presidente Hamilton Mourão defendeu a realização do evento. "Não tem público, né? Não tendo público, não tem problema. É só dividir bem as sedes e acabou", afirmou. Epidemiologistas discordam, como disseram ao UOL.
O número de estrangeiros que viriam ao Brasil por causa da competição é incerto. Ontem, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, disse que cada delegação seria composta por, no máximo, 65 pessoas, o que daria quase 600 integrantes (sem contar a brasileira).
Mas esse tipo de evento costuma a trazer muitas outras pessoas para o país sede: organizadores, equipes de transmissões, jornalistas, patrocinadores, dirigentes, árbitros, além de eventuais torcedores.
Jogadores vacinados
Ramos defendeu que a Copa América aconteça sem público e com atletas vacinados. Estas medidas, contudo, não são garantia de proteção.
Desde abril, a Conmebol está vacinando jogadores e membros de comissões técnicas de seleções e clubes justamente para realizar a competição. Mas as vacinas não impedem a transmissão, apenas diminui a intensidade da doença. Ou seja, não é eficaz para conter sua circulação.
"As vacinas dão proteção coletiva, não individual. Um cara que está vacinado tem uma proteção maior, muito provavelmente não vai sofrer uma internação num estado grave, mas ele pode ser portador do vírus e ele pode transmitir", diz Alves.
O único argumento que a Conmebol tem é que o Brasil foi o único país que aceitou isso.
Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto
A Conmebol decidiu suspender a competição na Argentina devido ao agravamento da pandemia no território. Segundo dados do governo argentino, o país tem mais de 3 milhões de contaminados, mais de 78 mil óbitos e uma taxa de ocupação de leitos de 77%.
A confederação achou melhor mudar o evento para o Brasil, onde as contaminações passam de 16 milhões, há mais de 460 mil óbitos e a taxa de ocupação dos leitos na maioria das capitais passa dos 80%.
Outros campeonatos em disputas
Um argumento do ministro da Casa Civil para defender a ocorrência da Copa América é que já há outros campeonatos em realização no Brasil. "Estamos em plena pandemia, só que o Campeonato Brasileiro, que envolve 20 times na série A, 20 na série B, está ocorrendo com jogos em todo o Brasil. Fora esse detalhe, acabaram na semana passada os estaduais."
O professor Domingos Alves compara este argumento àquele que aponta a inconsistência de haver bares abertos e escolas fechadas, ou seja, na realidade, deveriam estar todos fechados.
"O presidente da CBF [que levou a demanda ao governo] só replicou os erros que foram tomados antecipadamente aqui no Brasil. O Brasileirão e os estaduais não deveriam estar sendo promovidos frente à pandemia. Esse é um erro que ele mesmo cometeu em consonância com o governo federal."
O que parece uma justificativa, na verdade, é só uma extensão do erro.
Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto
Segundo o professor, é possível ver na curva de contaminação e mortes a "coincidência" da realização dos eventos esportivos. "Esses campeonatos, inclusive os estaduais, começaram quando estávamos em baixa de casos e depois os casos começaram a aumentar."
Justamente durante a ocorrência desses campeonatos estaduais, jogadores foram flagrados desrespeitando a concentração e frequentando festas clandestinas. Isso sem contar o emblemático caso do atacante Gabigol do Flamengo e o cantor MC Gui, que foram detidos em um cassino no bairro da Vila Olímpia, zona sul de São Paulo.
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