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'Nós confiamos', diz sobrinha de paciente morta após tomar proxalutamida

Rosiene Carvalho

Colaboração para o UOL, em Manaus

01/10/2021 04h00

A família da professora amazonense Elessandra Mota, 40, registrou boletim de ocorrência depois da morte da tia Zenite Mota, 71, em março deste ano. Ela fez parte de um grupo de pacientes que recebeu como tratamento para covid-19 uma série de medicamentos sem eficácia comprovada —como inalação de hidroxicloroquina e comprimidos de proxalutamida. Zenite estava internada no Hospital José Mendes, em Itacoatiara, município com 104 mil habitantes, a 270 km de Manaus.

"Várias pessoas morreram durante a inalação", disse Elessandra. "Quando colocavam a máscara de inalação, elas se debatiam e morriam assim."

Registros do boletim epidemiológico da FVS (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas) indicam que, entre o começo da pandemia e 31 de janeiro deste ano, Itacoatiara somou 168 óbitos por covid-19. Só em fevereiro, foram 77. Em março, outros 40. O estudo com proxalutamida nos hospitais do Amazonas ocorreu nestes dois meses.

Zenite (de vermelho) e a irmã; paciente tomou remédio sem eficácia comprovada contra covid em hospital no AM - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Zenite (de vermelho) e a irmã; paciente tomou remédio sem eficácia comprovada contra covid em hospital no AM
Imagem: Arquivo pessoal

A proxalutamida —que foi usada em testes para câncer de próstata—, fez parte de um tratamento experimental patrocinado pela Samel, rede de hospitais e plano de saúde. Em setembro, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) suspendeu a importação e uso de produtos contendo a substância em pesquisas científicas no Brasil.

Em nota, a Samel disse que não responde pelas mortes ocorridas em hospitais que não fazem parte de sua rede —como este de Itacoatiara. Depois do estudo, a direção do hospital do interior do Amazonas —que é público— foi trocada. Mas a prefeitura nega que a mudança tenha relação com o uso de remédios ineficazes contra a covid-19 (leia mais abaixo).

O estudo em questão é investigado pelo Ministério Público Federal do Amazonas, pelo Conselho Regional de Medicina e pela polícia.

Na apresentação da pesquisa, em uma das unidades da Samel em Manaus, o médico Flávio Cadegiani omitiu ao menos dois terços das mortes entre os pacientes que tomaram a proxalutamida. À reportagem, ele disse que as divergências em divulgações da pesquisa se devem a diferenças de critérios usados como referência.

'Jamais a gente desconfiou que equipe média faria isso'

Elessandra conta que a tia, além de idosos, tinham problemas no coração —o que os colocava no grupo de risco para covid-19.

"Nós confiamos. Jamais que a gente desconfiou de que uma equipe médica do hospital faria uma coisa dessas [usar remédios não comprovados contra a doença]. Se puxar os prontuários dos pacientes vão ver. Aquilo foi uma atrocidade", afirma a professora.

Segundo Elissandra, as famílias e acompanhantes não foram informados sobre o estudo em curso, apenas receberam informações que o "remédio da Samel" —como se referiam à proxalutamida— "estava salvando a vida dos pacientes". Apesar disso, eles assinaram papéis autorizando o uso dos medicamentos.

Todos morreram. Não sobrou um, no período de estudos que a gente não sabia [que era estudo]. São famílias de pessoas muito simples. Não sabiam e acho que até hoje nem sabem o que aconteceu de verdade."
Elessandra Mota, professora

No prontuário que a família mostrou ao UOL, de Zenite Mota, a informação é que dois comprimidos de hidroxicloroquina eram macerados em soro fisiológico e inalados pela paciente duas vezes ao dia. Já a proxutalutamida era administrada em três comprimidos, uma vez ao dia.

Prontuário Zenite - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

A sobrinha diz que Zenite chegou a falar que não queria mais tomar a medicação.

"Não nos disseram: isso é cloroquina que eu vou colocar e tem esse efeito... Minha tia tinha arritmia e teve três paradas cardíacas depois da inalação", diz. "Eu nem sabia o que era proxalutamida e que era remédio de câncer. Nem que a pesquisa não tinha autorização."

A professora afirma que a tia se internou três dias antes de a Samel começar a iniciar o tratamento com "resultado excepcional" da proxalutamida para covid-19, como afirmava Beto Nicolau, diretor-presidente do grupo nas redes sociais. "Temos certeza que vai fazer uma diferença muito grande na cidade de Itacoatiara", disse o empresário em uma entrevista, na época.

Segundo Elessandra, a tia não apresentava sintomas graves, mas indicaram a internação pois ela fazia parte do grupo de risco. "Ela estava animada com a recuperação. Conversava e dizia que ia para casa."

Com o passar dos dias e do tratamento, a idosa piorou.

"Os pés ficaram roxos, as partes próximas do pulmão com bolhas subcutâneas. A gente pedia transferência para Manaus e não davam. O médico não falava com os acompanhantes", contou. "Pedíamos explicação e não dava. O braço do lado esquerdo todo roxo."

Quando finalmente conseguiram a transferência para o hospital de referência em Manaus, o Delphina Aziz, era tarde demais. Zenite morreu três dias depois.

"A última vez que falei com ela foi quando minha tia saiu do hospital de Itacoatiara para Manaus numa UTI móvel. Já foi intubar. Eu disse a ela que ela ia dormir um pouco e ela sorriu para mim. Nunca mais acordou", disse.

Foi em Manaus, após a suspensão do tratamento usado em Itacoatiara, que a família começou a desconfiar. Para Elessandra, a demora na transferência tem relação com o estudo não autorizado. "Ninguém conseguia tirar lá de dentro. Não gosto nem de pensar nisso."

Investigação

A família registrou boletim de ocorrência em Itacoatiara em março, mas se queixa que as investigações não andaram. O delegado de Itacoatiara, Paulo Barros, informou ao UOL que o inquérito não foi concluído e que deve ouvir nos próximos dias os médicos que atuaram no hospital no período que as medicações foram administradas.

De acordo com Elessandra, após a denúncia, pessoas da família perderam o emprego na prefeitura e decidiram se mudar para Manaus.

Ela critica o fato de a CPI da Covid não ter se interessado pelo assunto. "Este caso de São Paulo [da Prevent Sênior] é igual o que ocorreu aqui, e o presidente da CPI é do Amazonas [senador Omar Aziz]", disse.

O Grupo Samel é da família do deputado estadual Ricardo Nicolau (sem partido) que, no ano passado, foi o candidato à Prefeitura de Manaus pelo partido do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM). Nicolau é pré-candidato ao governo do Amazonas.

Procurada, a assessoria de comunicação do senador informou que o deputado estadual Ricardo Nicolau e o irmão dele, o ex-vereador Hiram Nicolau, de Manaus, apresentaram carta de desfiliação do PSD-AM há cerca de um mês e que o caso está sendo analisado em uma das linhas de investigação que está sob responsabilidade do senador Otto Alencar (PSD-BA).

O que dizem o Grupo Samel e o hospital

O Grupo Samel, que administrou o estudo, disse, em nota, que "só pode responder pelos pacientes que utilizaram o medicamento em suas unidades hospitalares, que foram devidamente acompanhados". O texto afirma que a rede "como é sabido por todos, no Amazonas apresentou os melhores resultados". Os resultados divulgados, porém, são confusos e omitem mortes.

O grupo indica ainda que os esclarecimentos sobre o uso da proxalutamida devem ser solicitados ao pesquisador responsável e "ressalta que jamais colocaria a vida de seus pacientes em risco".

O diretor do hospital de Itacoatiara, André Vasconcelos, disse que qualquer informação sobre o caso seria prestada pela Secretaria de Comunicação do município. A assessoria passou o contato da responsável pela Divisão de Vigilância, Cristiane Benevides, que negou que a unidade tenha aderido a estudos com a proxalutamida ou cloroquina.

"Desconheço esse tipo de estudo. Estou na linha de frente. Se foi usado, foi conduta médica e não faz parte de nenhum protocolo do hospital", afirmou.

Sobre a tia de Elissandra, Benevides disse que a paciente era idosa e tinha outras comorbidades. Acrescentou que, caso tenha ocorrido "algum procedimento que não seja correto, o médico precisa responder por suas decisões frente ao tratamento".

A direção do hospital da época do estudo foi trocada. A assessoria de comunicação da Prefeitura de Itacoatiara informou que a administração e manutenção da unidade é compartilhada com o estado e os cargos são de indicação da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas.

Depois da prisão do titular da pasta à época, Marcelus Campelo, a direção do hospital na cidade também mudou, em junho. Benevides e a assessoria de imprensa de Itacoatiara negam que a troca tenha ocorrido por causa das denúncias sobre o uso de medicamentos sem comprovação científica contra covid-19.