Apartheid alimenta desconfiança com vacinas anticovid-19 na África do Sul
A idosa observa o céu que escurece ao longe. Uma tempestade se aproxima. Ao ouvir a palavra "vacina", ela se altera. "Não confiamos" nisso, diz Josefine Hlomuka, de 82 anos, que passou mais da metade de sua vida sob o regime do Apartheid na África do Sul.
As décadas de manipulação e de abusos contra a maioria negra da África do Sul continuam causando dor e vêm à tona de diferentes formas. O sentimento antivacinas, alimentado pelo mesmo populismo visível em outras partes do mundo, ganha força no país.
Um ceticismo que fica evidente desde que o país do continente africano mais afetado pela pandemia tenta obter vacinas para sua população, dando origem a todo o tipo de teoria conspiratória.
Em White City, um bairro de Soweto, cujas casas idênticas lembram a existência de um antigo quartel, os moradores relutam em aceitar os imunizantes.
"Vi gente que recebeu a injeção [com a vacina] e que morreu", diz Tshegofatso Mdluli, de 22 anos, com dois dentes de ouro iluminando seu sorriso.
"E se eles nos derem uma vacina de quinta categoria?", pergunta, com um leve ar de suspeita, Mbali Tshabalala, 35, em frente a sua humilde casa. "Os efeitos que isso poderia ter (...) tiram meu sono", afirma.
Mitos e rumores "estão enraizados em angústias muito reais", fruto de "experiências muito concretas", explica a professora de Saúde Coletiva Helen Schneider, lembrando o projeto secreto de injeções dos anos 1980, destinado a conter a fertilidade da população negra.
Seu criador, Wouter Basson, apelidado de "Doutor Morte", gerou polêmica no mês passado, quando foi divulgado que ainda exercia a profissão em duas clínicas no país.
Nos anos 2000, suspeitas do mesmo tipo surgiram em torno dos tratamentos contra a aids.
"O fim do Apartheid estava tão perto que você pode imaginar como era fácil traçar um paralelo [...] Outra invenção dos brancos para dominar, para controlar", comenta Eric Goemaere, da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), que participou dessa campanha em uma grande "township" da Cidade do Cabo.
"Destruir os africanos"
As autoridades públicas tentaram conter as suspeitas muito antes de as primeiras vacinas chegarem a Joanesburgo na segunda-feira.
"Informações falsas colocam vidas em risco", alertou o presidente Cyril Ramaphosa em janeiro, pedindo que "se estimule a confiança".
"Não acreditem em tudo o que leem em suas mensagens no WhatsApp", insistiu a bióloga Koleka Mlisana durante uma entrevista coletiva virtual na semana passada.
"Não há microchips nem rastreadores escondidos nos frascos", ressaltou. "Nenhuma vacina pode modificar seu DNA", acrescentou.
Ela frisou que o coronavírus não busca "destruir os africanos", pedindo à população que consulte os balanços dos Estados Unidos, ou da Europa, por exemplo.
Em janeiro, apenas 51% dos sul-africanos se declararam dispostos a serem vacinados, de acordo com uma pesquisa da Ipsos, e 67%, conforme outra pesquisa da Universidade de Joanesburgo, que destacava que, entre os céticos, apenas 10% alegavam teorias conspiratórias.
"É claro que [essas teorias] desempenham um papel, mas existem razões mais profundas que ocupam menos espaço na imprensa", disse Sarah Cooper, do Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul.
Como aconteceu durante a epidemia da aids, figuras públicas estão contribuindo com sua imagem para tranquilizar a população. O pastor Desmond Tutu, uma figura na luta anti-Apartheid, e outros anunciaram que vão-se vacinar.
"O governo não é uma fonte confiável, infelizmente. Mente para nós o tempo todo", critica Mocke Jansen Van Veuren, organizador de uma oficina para aumentar a conscientização sobre a covid-19 no bairro de Kliptown, em Soweto, um distrito muito pobre.
A sombra do apartheid continua a pairar.
"Negros e mestiços estão traumatizados", interrompe um jovem durante uma oficina organizada em um sábado. "E o governo não leva isso em conta", lamenta.
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