Punição a responsáveis por tragédia deve demorar anos, dizem advogados
A punição aos responsáveis pela tragédia em Santa Maria, que deixou mais de 230 mortos, deve levar anos devido à quantidade de atores envolvidos no processo e à lentidão da Justiça brasileira, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
AS FASES DA INVESTIGAÇÃO
Coleta de provas |
A polícia fez a maior parte da coleta no próprio dia do incêndio, mas não descarta voltar ao local em busca de outras evidências se necessário para dirimir dúvidas |
Depoimentos |
Além dos músicos da banda Gurizada Fandangueira, clientes, funcionários e os donos da casa noturna seguem sendo ouvidos na delegacia |
Prisões |
Quatro pessoas estão presas: dois músicos da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava na boate, e os sócios do estabelecimento, Elissandro Callegari Spohrs e Mauro Hoffmann |
Exame de documentação |
Polícia vai revisar alvará de funcionamento e o plano de prevenção de incêndio da boate Kiss |
Perícia |
O trabalho dos peritos foi iniciado no dia do acidente e só será concluído com a divulgação dos laudos técnicos. Pode ser concluída em 30, 60 ou 90 dias, segundo a polícia |
Eles alertam que, por mais que o inquérito da polícia e a apresentação da denúncia pelo Ministério Público (MP) sejam concluídos rapidamente, o julgamento pode ser longo por causa da complexidade do caso.
Segundo os especialistas, apesar de a casa noturna ser a principal cena de investigação policial, há muitos elementos que ainda precisam ser esclarecidos, como a participação de cada um dos envolvidos no incêndio e na subsequente morte dos jovens.
"Ainda é preciso definir quais foram os papéis de cada um dos atores. Houve negligência dos donos da casa noturna? Os seguranças impediram a saída do público? Por que um integrante da banda acendeu um sinalizador? Isso foi a causa do incêndio?", enumera Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"É claro que as provas e os indícios constarão no inquérito policial e na denúncia do MP. Mas há muitos atores envolvidos. O recolhimento das evidências não pode ser feito de maneira açodada, pois, do contrário, o juiz pode requerer revisão do processo, o que atrasaria o julgamento", acrescenta.
Recursos
Na avaliação dos especialistas, também será preciso discutir o tipo de crime cometido pelos envolvidos na tragédia: se os acusados tiveram ou não intenção de matar.
Além disso, mesmo depois de julgados em primeira instância, os acusados poderiam recorrer da condenação - dependendo do caso, em liberdade - em tribunais superiores, por meio da interposição de recursos.
PERGUNTAS A SEREM RESPONDIDAS
A boate poderia funcionar com apenas uma saída de emergência? | Por decreto não poderia. Mas então por que o Corpo de Bombeiros concedeu o alvará de funcionamento? |
Onde estão as imagens do sistema de segurança? | Os primeiros depoimentos dão conta de que a gravação não estaria funcionando |
Os seguranças impediram os clientes de sair da boate sem pagar a comanda? | As informações iniciais dizem que isso pode ter ocorrido antes de eles se darem conta de que estava acontecendo o incêndio |
A reforma recente na boate pode ter contribuído para causar o incêndio? | O teto pode ter sido rebaixado, o que colocaria o material pirotécnico mais próximo de um isolamento acústico altamente inflamável. O delegado que chefia as investigações disse que a casa noturna havia feito reformas "ao arrepio de qualquer fiscalização, por conta e risco dos proprietários" |
Por que os extintores não funcionaram? | A polícia diz que os extintores podem ter sido falsificados |
A iluminação de emergência funcionou corretamente? | Polícia investiga hipótese de as pessoas terem ficado presas no banheiro por não conseguirem enxergar a saída por falta de sinalização adequada e excesso de fumaça |
Donos permitiram a superlotação? | O local, segundo os bombeiros, comportaria 691 pessoas. Mas polícia estima que mais de mil estavam presentes na hora do incêndio. Os donos da boate, porém, dizem que não havia mais de 650 pessoas |
"A legislação brasileira é ultrapassada e acaba por reforçar a cultura de irresponsabilidade, que, no fim das contas, acaba por gerar a sensação de impunidade no país", afirma Odete Medauar, professora de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
"Ou seja, trata-se daquela velha sensação de que ninguém no Brasil é punido", acrescenta.
Prisão temporária e preventiva
Segundo a polícia de Santa Maria, quatro envolvidos na tragédia permanecem presos temporariamente.
A prisão temporária deles foi decretada na última segunda-feira e durará cinco dias, podendo ser prorrogada por igual período.
Especialistas afirmam que, se necessário, depois desse tempo, a prisão preventiva dos suspeitos pode ser decretada.
"Porém, isso tende a ser pouco provável, uma vez que ela só é pedida em casos excepcionais, como, por exemplo, se há ameaça de fuga ou se há risco à população", afirma Sundfeld.
Segundo os especialistas, as responsabilidades dos acusados podem variar nas esferas cível (indenizações), penal (crimes) e administrativa (processo disciplinar).
Na última terça-feira, em uma entrevista coletiva, o delegado Marcelo Arigony, responsável pelo caso, e o promotor Cesar Augusto Carlan disseram que agentes públicos poderiam ser responsabilizados pela tragédia na boate Kiss.
Assim, além dos donos da casa noturna e dos integrantes da banda que acenderam o sinalizador, que teria provocado o incêndio, a Prefeitura e o Corpo de Bombeiros também poderiam ser responsabilizados pela tragédia.
"Eles poderiam ser considerados corresponsáveis pelo crime, uma vez que a lei determina os deveres do ofício", diz o jurista Roberto Delmanto Júnior.
Penas
A definição das penas dependerá do entendimento do Judiciário. Segundo o advogado criminalista Carlos Kauffmann, se o juiz entender que houve homicídio culposo (quando não há intenção de matar), as penas podem variar de um a até três anos de prisão.
"Nesse caso, as penas devem ser convertidas em prestação de serviços à comunidade", afirma Kauffmann.
Por outro lado, para o criminalista, o Ministério Público pode entender que o incêndio foi causado por dolo eventual, quando o acusado, apesar de não ter a intenção de matar, assume concretamente o risco do resultado.
"Nessa hipótese, que, apesar de ser menos provável, parece ser a adotada pelo MP, uma vez que houve prisão temporária, o caso poderia ir a um tribunal do júri e demoraria mais tempo. As penas variariam de seis a 20 anos de prisão, dependendo da qualificadora", acrescenta Kauffmann.
Para parte dos especialistas ouvidos, no entanto, a pressão popular e a repercussão negativa do caso para o Brasil podem contribuir para que o episódio não caia no "esquecimento".
"Por mais que o processo seja demorado, acredito que não deva haver 'pano quente' nessa história, devido à quantidade de mortes, sobretudo de jovens", conclui Medauar, da USP.
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