A arte milenar que ensina falcões a prevenir acidentes aéreos
Uma prática milenar está sendo utilizada para aumentar a segurança da aviação. Considerada uma mescla de arte, esporte e manifestação cultural, a falcoaria tem protegido aeronaves pelo mundo nos dois momentos mais delicados de um voo: a decolagem e o pouso.
Graças a técnicas de adestramento de aves de rapina para a caça, falcões e gaviões fazem o monitoramento das pistas dos aeroportos com a missão de minimizar o 'risco aviário', ou seja, o choque de pássaros contra os aviões, o que pode causar acidentes graves.
Alguns dos mais movimentados aeroportos do mundo utilizam a falcoaria para prevenir acidentes, como JFK (Nova York), Portela (Lisboa) e Barajas (Madri). No Brasil, a prática já foi adotada nos aeroportos da Pampulha e Confins (Belo Horizonte), Galeão (Rio de Janeiro), Salgado Filho (Porto Alegre), Eurico de Aguiar Salles (Vitória), Lauro Carneiro de Loyola (Joinville) e Val-de-Cans/Júlio Cezar Ribeiro (Belém).
"A utilização da falcoaria pode reduzir de 30% a 40% a probabilidade de colisões entre pássaros e aeronaves. É uma técnica que tem a importância cada vez mais reconhecida e é cada vez mais adotada por todo o mundo", afirma à BBC Brasil o falcoeiro e biólogo Carlos Eduardo Carvalho, pioneiro da falcoaria para a segurança aérea no Brasil, ao adotar a prática, em 2007, no aeroporto da Pampulha.
"O entorno das pistas é muito atraente, especialmente em aeroportos dentro de centros urbanos, porque os pássaros veem a grama como um alimento de fácil acesso. A presença dos falcões nesse ambiente dispersa as aves, pois o animal, naturalmente, foge do seu predador", explica Carvalho, que atualmente desenvolve a tese "Eficiência de Falcoaria em Controle e Manejo de Fauna no Brasil", no Doutorado em Ecologia, Conservação e Manejo de Fauna Silvestre pela UFMG.
Risco nas alturas
Segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), somente em 2014 foram registradas 1.495 colisões e 559 quase colisões entre pássaros e aeronaves no Brasil. Para João Paulo Santos, presidente da Associação Brasileira de Falcoeiros e Preservação de Aves de Rapina (ABFPAR), ainda mais relevante que o alto número de ocorrências é o momento em que elas acontecem durante o voo.
"Temos que ter em mente que a falcoaria age em momentos fundamentais da atividade aeronáutica, que são justamente a decolagem e o pouso das aeronaves. São momentos em que o avião está em seu limite operacional, e qualquer colisão de uma ave em uma turbina pode causar um acidente grave", enfatiza Santos à BBC Brasil.
Um dos casos mais notórios e graves de colisão de pássaros contra aviões completou sete anos no dia 15 janeiro. Pouco depois de decolar do aeroporto de La Guardia, em Nova York, com destino a Seattle, também nos EUA, o voo US Airways 1549 foi atingido por uma formação de aves. Com ambas as turbinas avariadas, o capitão Chesley Sullenberger conseguiu realizar um pouso forçado no Rio Hudson, salvando a vida das 155 pessoas que viajavam a bordo.
Técnica milenar e amiga do meio ambiente
Os primeiros registros acerca da falcoaria datam do ano 1400 a.C., na Mesopotâmia (atual Iraque), mas há quem defenda que o uso das aves de rapina para a caça já existia em 10.000 a.C., durante o período neolítico. Historicamente, a prática é tratada como esporte, arte e manifestação cultural, e é frequentemente usada como instrumento para a preservação do meio ambiente.
"Os falcoeiros estão ligados a diversos projetos de recuperação e reabilitação de aves de rapina em todo o mundo. A recuperação do Falcão Peregrino (Falco peregrinus), nos EUA, ou do Açor (Accipiter gentilis), no Reino Unido, só foi possível graças a falcoeiros e à aplicação de técnicas desenvolvidas no âmbito da falcoaria", disse à BBC Brasil Pedro Afonso, presidente da Associação Portuguesa de Falcoaria.
"Essas técnicas também são usadas hoje para ajudar no controle de espécies problemáticas para o homem de uma forma natural e biológica, mantendo uma harmonia perfeita com a natureza e com uma eficácia muito grande quando comparada a métodos mais artificiais", defende o falcoeiro português.
No Brasil, a ABFPAR tem realizado atividades de educação ambiental com a população - especialmente em escolas públicas -, nas quais explica a importância das aves de rapina para o meio ambiente.
"Demonstramos conceitos básicos da biologia de uma ave de rapina e a sua respectiva importância no ecossistema. Esse trabalho é muito importante, pois além de explicar ao público leigo como funciona a falcoaria, promove a conscientização da sociedade sobre a ação negativa do tráfico de animais silvestres", destaca Santos.
Cuidados com a presa
A preocupação com o meio ambiente também se estende à aplicação da falcoaria nos aeroportos, onde é feito um trabalho de preservação dos pássaros caçados.
"Depois que o falcão faz a captura de uma ave nós sempre tentamos resgatá-la com vida. Claro que isso não é possível em 100% dos casos, mas quando conseguimos encaminhamos esses animais para departamentos que vão tratá-los e devolvê-los à natureza", diz Carlos Eduardo Carvalho.
Segundo o responsável pelo uso da falcoaria nos dois principais aeroportos de Belo Horizonte, é preciso um trabalho cuidadoso e regular para que a técnica resulte no aumento da segurança dos pousos e decolagens.
"Fazemos duas rondas diárias de duas horas cada nas pistas, uma pela manhã e outra à tarde. Essa regularidade é necessária porque passa a mensagem às aves de que o falcão está presente constantemente naquele local, então não é seguro ficar ali", diz Carvalho.
Na opinião do falcoeiro mineiro, é virtualmente impossível acabar com as colisões entre pássaros e aviões, mas é possível pôr fim aos choques que possam colocar vidas em risco.
"Existem dois tipos de colisões que são muito perigosas: a que envolve uma ave de grande porte e a que envolve muitas aves de pequeno porte ao mesmo tempo. E com a falcoaria conseguimos eliminar esses dois riscos", garante.
"Não adiantaria de nada termos apenas duas ou três colisões num ano, mas um avião cair em decorrência delas. Isso seria um problema gravíssimo, obviamente. Podemos ter 100 colisões de beija-flores com 100 aeronaves, o que não podemos ter é a colisão de 100 beija-flores com uma aeronave, porque isso a derrubaria", explica.
Ainda não existem cursos profissionalizantes de falcoeiros no Brasil. Segundo Carvalho, o objetivo é criar no futuro uma pós-graduação que habilite os interessados a utilizar a prática na segurança dos aeroportos.
Para quem tem vontade de se iniciar na falcoaria, o primeiro passo é entrar em contato com a Associação Brasileira de Falcoeiros e Preservação de Aves de Rapina, pois a atividade ainda não é regulamentada no Brasil.
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