Os jovens russos que estão treinando para uma guerra nuclear com o Ocidente
Em meio a uma floresta às margens de Moscou, dezenas de estudantes usando uniforme de combate estão correndo, atirando entre si com espingardas de pressão de ar.
A viagem de final de semana para jogar paintball, organizada por um partido de oposição ao governo, parece inofensiva. Mas na Rússia nem tudo é o que parece.
"Nós oferecemos um grande leque de temas militares", diz Stepan Zotov, ativista do partido responsável pelo evento.
"Há luta de facas, arremesso de facas. Também trabalhamos com munição real, atirando em alvos ou às vezes em acampamentos militares."
O partido de Zotov, Rodina ("Pátria Mãe" em russo), faz parte do que é conhecido como "oposição leal", o que significa que apoia o Kremlin.
E suas atividades fazem parte de um programa "de educação militar e patriótica" apoiado pelo governo - e voltado para estudantes.
Conflito iminente?
Ao assistir à televisão russa, a impressão é a de que o país está prestes a entrar em confronto militar com o Ocidente.
Recentemente, um programa de notícias estatal veiculou que a população deveria localizar o abrigo nuclear mais próximo de suas casas antes que fosse tarde demais - a Rússia recentemente realizou exercícios em escala nacional para se preparar para um ataque do tipo.
Zotov leva a possibilidade muito a sério.
"Estamos nos preparando para um confronto com o Ocidente. Mas a maior parte desse confronto acontece no nível cultural, informacional e de valores. A civilização russa é uma cultura de heróis e guerreiros", diz.
Para ele, o colapso da União Soviética foi uma tragédia.
"Nosso grande país foi dissolvido sem guerra armada porque começamos a amar um povo e uma cultura diferentes, não a nossa."
Ucrânia
Enquanto um conflito militar aberto não vem, o jovem diz que há outros confrontos indiretos entre a Rússia e seus rivais ocidentais. Por exemplo, no leste da Ucrânia, onde ele diz ter lutado como voluntário ao lado de forças separatistas.
"Eu, meus camaradas e alguns dos meus cadetes participamos. É um conflito entre a Rússia e o Ocidente", diz.
Kiev, que nos últimos anos andou ensaiando laços mais próximos com a União Europeia, acusa Moscou de retaliar essa aproximação fomentando o separatismo na sua área de fronteira, onde culturalmente a influência é russa.
O ápice dessa tensão ocorreu em 2014, quando a Rússia anexou a península da Crimeia, até então sob controle ucraniano.
Porém, nenhum dos estudantes entrevistados pela BBC parece interessado em se voluntariar para lutar na Ucrânia. Eles são adolescentes ou jovens de 20 e poucos anos e nasceram após o período soviético. O discurso da televisão não parece convencê-los.
"Você não devia assistir à TV na Rússia", diz uma jovem. "A televisão manipula as coisas. É uma guerra de informação. Você não devia prestar atenção nisso. Eles deixam as pessoas ansiosas sem motivo."
Questionados sobre o que o conceito de Ocidente significa, as respostas são bem diferentes das ideias de Zotov. "Capitalismo", diz um. "Oportunidade", afirma outro.
"Além disso, a cultura é interessante. É uma cultura diferente. Talvez algum dia exista uma cooperação, porque todos vivemos no mesmo planeta e a guerra não faz sentido", disse a adolescente.
O que se vê na TV russa hoje ou é sancionado ou simpático ao Kremlin.
Os programas de notícias apresentam uma série de histórias sobre guerras e crises no exterior, falando também das incoerências internacionais. O governo ucraniano foi acusado de crucificar bebês e a BBC, de realizar um ataque com armas químicas na Síria.
Para apoiar o oportunismo político, foi criada uma abordagem filosófica. Um de seus arquitetos é Alexander Dugin, um pensador que está sob sanção dos Estados Unidos por seu suposto envolvimento na anexação da Crimeia à Rússia e na guerra no leste da Ucrânia.
Rússia única
"A verdade é uma questão de fé", disse Dugin em seu canal de televisão pró-Kremlin.
"A pós-modernidade mostra que a tão chamada verdade é uma questão de fé. Então nós acreditamos no que fazemos e no que dizemos. E esta é a única maneira de definir a verdade. Temos nossa verdade russa especial, que você deve aceitar."
A filosofia de Dugin é conhecida como Eurasianismo. Segundo ela, a Rússia Ortodoxa não faz parte nem do Ocidente nem do Oriente, mas de uma civilização isolada e única que batalha pelo lugar que merece entre as potências mundiais.
A obra dele tem se tornado cada vez mais influente entre a elite política e militar da Rússia.
"Se os Estados Unidos não querem iniciar uma guerra, você deveria reconhecer que eles não são mais o único líder. E com a situação na Síria e na Ucrânia, a Rússia diz 'não, você não é mais o chefe'. Essa é a questão de quem manda no mundo. Apenas a guerra realmente poderia decidir."
Atualmente, as relações entre Rússia e Estados Unidos estão no momento mais delicado desde o colapso da URSS e o fim da chamada Guerra Fria, em 1991.
A constante tensão entre os dois países foi intensificada nas últimas semanas após a ofensiva conjunta das forças sírias e russas na cidade de Aleppo, na Síria, contra os rebeldes.
O presidente dos EUA, Barack Obama, condenou a ofensiva e ameaçou interromper negociações a respeito da guerra, enquanto o presidente russo Vladimir Putin acusou os americanos de deteriorarem as relações do Ocidente com a Rússia propositalmente.
Além disso, no dia 20 de setembro um comboio da ONU foi atingido e os EUA atribuíram o ataque à Rússia, que responsabilizou um grupo terrorista e acusou os Estados Unidos de acusá-la injustamente.
Paralelamente, o governo americano acusou a Rússia de usar hackers para desestabilizar as eleições presidenciais no país depois que e-mails de funcionários do Partido Democrata foram vazados.
No entanto, segundo o ex-agente da CIA Paul Pillar, trata-se de apenas de uma competição por influência.
"Não estamos vendo o tipo de competição ideológica que caracterizou a Guerra Fria e felizmente já não temos outra corrida nuclear armamentista", disse à BBC.
Filosofia russa
As ideias bélicas de Dugin não estão voltadas somente ao Ocidente. Há uma mensagem de consumo interno também, que é: não existem valores liberais universais, não há uma contradição inerente em uma democracia e que não permita a discordância.
Na sombra das paredes do Kremlin, o cada vez mais enxuto grupo de ativistas russos mantém viva a memória de Boris Nemtsov, deixando flores no lugar onde o político de oposição foi assassinado no ano passado. É um trabalho frio e solitário.
"Eu ainda acredito que aquela verdade existe", diz Mikhail Shneider, um ex-dissidente soviético e camarada de Nemtsov.
"É um fato que eles mataram Boris Nemtsov bem aqui, a 10 metros de onde estamos. É um fato que Putin está no Kremlin. É um fato que a TV de Putin mente."
A maioria dos russos não acredita de verdade que uma guerra nuclear com o Ocidente está prestes a acontecer. Talvez nem seus políticos acreditem nisso. Eles provavelmente não acreditam de verdade no Estado Orwelliano pós-moderno.
Mas quanto mais uma mentira é repetida, maior é o risco de ela se tornar algum tipo de realidade.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.