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Como uma confusão geográfica distorceu os dados do comércio entre Brasil e Coreia do Norte

Camilla Veras Mota

Da BBC Brasil em São Paulo

07/10/2017 20h55

Placas de memória, processadores, partes de motores, acessórios para veículos. Entre janeiro e agosto, produtos industrializados de alto valor agregado responderam por mais da metade dos US$ 2,7 milhões que o Brasil comprou da Coreia do Norte. A situação não é exclusiva deste ano. Em 2016, 67% dos US$ 8,71 milhões desembarcados por aqui foram circuitos integrados - chips. Há anos os dados oficiais do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços indicam que importamos alta tecnologia do país de Kim Jong-un.

Para especialistas em Coreia, a estatística curiosa é resultado, na verdade, de um erro comum não apenas no Brasil: o registro pelas importadoras, por engano, de produtos da Coreia do Sul como provenientes do norte.

Os circuitos integrados são o principal item de exportação da Coreia do Sul. Em 2015, o país vendeu US$ 62,8 bilhões desses produtos, 12% do que embarcou para o exterior, segundo a Comtrade, base de dados compilada pela ONU. Do total, US$ 770 milhões chegaram ao Brasil, 14% do que compramos dos sul-coreanos naquele ano.

"Já no passado alguns itens da nossa pauta de importação me intrigavam", diz Roberto Colin, embaixador brasileiro na Coreia do Norte entre 2012 e 2016. "Conversei com 'traders' brasileiros e estrangeiros que faziam negócios com a Coreia do Norte e eles acreditam que, no caso dos circuitos integrados e outros produtos eletrônicos, se trata mesmo de um equívoco e que esses itens são, na verdade, importados da Coreia do Sul", diz ele, que está baseado atualmente na Estônia.

O economista americano Nicholas Eberstadt, que estuda o país há quase 30 anos, afirma que, na década de 1990, erro parecido indicava que o México vinha importando milhões de dólares em veículos da Coreia de Norte.

A estatística, ele conta, deu origem a "maravilhosas teorias" - falsas na realidade - sobre supostos planos de Kim Jong-il, pai de Kim Jong-un, de infiltrar seus automóveis no mercado americano. "Os norte-coreanos não são grandes produtores de veículos, de computadores, de celulares. Isso é reflexo do erro de algum funcionário que confundiu sul com norte", ressalta ele, que é pesquisador do think tank American Enterprise Institute (AEI).

O diretor de análise de dados da consultoria Korea Risk, Leo Byrne, que viu situação parecida também na Índia, diz ter detectado a inconsistência nos dados brasileiros em 2014 e chegou a entrar em contato com o ministério na época, sem sucesso.

À BBC Brasil, a pasta afirmou que os registros administrativos que compõem as estatísticas de comércio exterior "são preenchidos pelo exportador e importador e eles são responsáveis pela veracidade das informações prestadas".

Baseado em Seul, Byrne investiga diferentes bases de dados para detectar violações às sanções impostas à Coreia do Norte e entender como funciona a economia do país. No ano passado, cruzando informações de três fontes diferentes, o britânico descobriu, por exemplo, que o país vinha usando navios com a bandeira da Tanzânia para descumprir a resolução 2270 da ONU.

De março de 2016, ela é uma das quase 10 resoluções que, desde 2006, condenam o programa nuclear norte-coreano e que, em resposta a testes realizados pelo país, impõem sanções - restrições de produtos que podem ser comprados e vendidos por outros países. A 2270 é uma das mais duras. Além de estender a lista de mercadorias que não podem ser comprados da Coreia e exportados para o país, ela limitou ainda mais as possibilidades de comércio e instituiu uma inspeção obrigatória a todas as cargas que têm o país como origem ou destino.

As sanções ficaram ainda mais rígidas no último mês de setembro, depois de uma sequência de testes com mísseis e de ameaças feitas pelo país.

Criatividade

"A Coreia do Norte exporta tipicamente matérias-primas", diz Byrne. Seu principal parceiro comercial é a China, compradora de 90% dos US$ 2,9 bilhões exportados pelo país em 2016, de acordo com a Comtrade. O segundo lugar é da Índia, com 3%. O Brasil ocupa a 11ª posição, com 0,2% do total.

O comércio com a Coreia do Norte representaria menos de 0,1% do total de importações e exportações do Brasil, de acordo com os dados registrados oficialmente - incluindo os atribuídos incorretamente ao país. Devido à pouca expressividade, os especialistas em comércio exterior brasileiros não costumam acompanhar a corrente entre os dois países, o que explica que esse tipo de erro sobre a importação de manufaturados de alto valor agregado não tenha gerado estranhamento no mercado.

Tradicionalmente, os principais produtos exportados pelo regime de Kim Jong-un são carvão, petróleo, minério e vestuário - todos alvos de novas sanções desde o ano passado.

As restrições crescentes dos últimos dez anos, contudo, têm estimulado a criatividade dos norte-coreanos para diversificar a pauta de exportações e desenvolver produtos com "certa" tecnologia, diz o britânico Christopher Green, pesquisador da Universidade de Leiden, na Holanda, e ex-editor do Daily NK, periódico virtual focado em notícias sobre a Coreia do Norte.

Ele ressalva, contudo, que é difícil fazer um diagnóstico preciso - inclusive sobre se esse desenvolvimento tecnológico tem ou não relação com o programa nuclear -, já que o governo norte-coreano é pouco transparente e há uma carência grande de informações públicas disponíveis.

Crescimento

"Desde 2010, o país vem dando mais atenção ao desenvolvimento econômico", pondera Bradley Babson, à frente do DPRK Economic Forum no U.S.-Korea Institute, ligado à Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.

Em seu primeiro grande discurso, em abril de 2012, Kim Jong-un afirmou que a população não teria mais de "apertar os cintos" e que passaria a "aproveitar a riqueza e prosperidade do socialismo", destaca Babson. Desde então, a propaganda do governo passou a ressaltar o foco em uma "economia do conhecimento" e no desenvolvimento tecnológico.

Ele conta que da década de 1990 para cá pesquisadores foram enviados pela primeira vez a universidades no exterior, tiveram acesso à internet e a aparelhos celular.

O setor privado ganhou maior participação na economia, o fornecimento de energia elétrica ficou mais estável e o risco iminente de fome a que a população estava sujeita é uma lembrança de um passado recente.

"Parece um pouco o Vietnã em meados dos anos 1990", diz ele, que trabalhou no país do sudeste asiático durante a transição entre os regimes comunista e capitalista. A diferença do caso norte-coreano, ele acrescenta, é o discurso bastante ideológico do governo, o foco no programa nuclear e a consequente escalada de tensão que essa combinação gera internacionalmente.

"Como esses dois lados (o desenvolvimento econômico e o programa nuclear) vão conviver no futuro, isso é um mistério".

Eberstadt, do AEI, ressalva que, apesar da melhora das condições econômicas, há indícios de que a Coreia do Norte continua contando com uma série de atividades ilegais para se financiar, da venda de armas a falsificação. "A moeda está relativamente estável há cinco anos, isso não é comum em economias como a norte-coreana e só reforça a crença de que eles contam com fontes ocultas de receitas".