O bunker nuclear da "Coreia do Norte da Europa" que virou atração turística
Não dava para vê-lo a partir da rua. Um longo túnel, cavado através da inclinação na parte da frente, era a única maneira de entrar. Esse não era um lugar pelo qual você passearia a esmo - trata-se da entrada de uma base militar.
O túnel de quase duas vezes o comprimento de um campo de futebol é mais frio que a temperatura exterior. Aqui e ali há poças de água no chão. Um harmonioso zumbido fica mais e mais alto conforme você chega ao centro do túnel. Lá atrás, o guarda que está na entrada do túnel vira uma silhueta contra uma luz muito forte, do tamanho de um soldado de brinquedo.
No total, você precisa caminhar 198 metros para chegar ao estacionamento no final. Um prédio institucional cinza se ergue diante de você. Este é o Bunk'Art 1, e alguns minutos de caminhada na estrada ao lado o leva a um dos esconderijos mais secretos da Guerra Fria.
Trata-se do melhor lugar para se estar em Tirana em um dia de verão, quando a temperatura chega a 40°C, segundo Artemisa Muco, uma jovem de 24 anos formada em história cultural e que trabalha como guia no Bunk'Art 1 - um lugar tão secreto que era conhecido apenas como "Unidade 0774" e que foi construído para durar até o fim dos dias.
Enver Hoxha governou a Albânia por quatro décadas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1980, ele comandou o país com um estilo stalinista de autossuficiência pensado para tornar a Albânia um país moderno e independente.
Foi um caminho único - seu zeloso compromisso marxista-leninista permitia poucos desvios. A Albânia cortou relações com a Iugoslávia em 1948, com a União Soviética em 1961 e com a China em 1979, tudo por causa do que foi interpretado como um desvio do dever socialista.
Com esse zelo stalinista, veio a paranoia. Hoxha, como ex-guerrilheiro que lutou contra os alemães na Segunda Guerra Mundial, acreditava que os inimigos tanto do Ocidente como do Oriente planejavam invadir seu pequeno e montanhoso país.
Ele ordenou um enorme programa de construção de bunkers que fariam com que os cidadãos da Albânia lutassem um estilo de guerrilha a partir de uma enorme rede de caixas de concreto. E, conforme a guerrilha continuasse, Hoxha e o resto da elite no comando coordenariam a resistência a partir de seu bunker.
Bunker foi criado pela paranoia de líder albanês
A Unidade 0774 é o resultado da paranoia singular de Hoxha. Construída entre 1972 e 1978, ela tem mais de 300 cômodos espalhados em cinco andares subterrâneos, muitos deles profundamente dentro das inclinações das montanhas Mali I Dajtit, a leste da capital albanesa. É uma recordação claustrofóbica e sem janelas da Guerra Fria, em uma de suas esquinas menos observadas.
Se o Ocidente - ou o Oriente - invadisse a Albânia, a Unidade 0774 ficaria bem movimentada. Toda a defesa do país seria organizada a partir daqui. Mais de 300 pessoas estariam aqui dentro, incluindo o Estado Maior do país.
"Haveria comida, água e combustível aqui o suficiente para eles ficarem por um ano inteiro", diz Muco.
O bunker foi construído completamente em segredo. Em uma parede, está uma imagem de Hoxha visitando no dia de sua inauguração, uma das poucas noites que ele passou aqui antes de sua morte, em 1985.
Apesar disso, ele tinha seus próprios aposentos, com uma cama luxuosa, um escritório de secretária e um banheiro com um chuveiro movido a diesel.
As acomodações privadas são decoradas com o que parece ser algum tipo de madeira escura. "É painel de fibra", diz Muco. "Todos os outros quartos, como o do primeiro-ministro, são feitos de madeira. Este é o único feito assim."
A Albânia fez a transição entre país de um partido único para eleições parlamentares em 1991, mas o resto da década foi marcada pelo caos - em 1997, o governo do país entrou em colapso após o fracasso de um esquema de pirâmide financeira que engoliu boa parte da riqueza do país.
Cerca de 2.000 pessoas morreram e muitas bases militares foram saqueadas no caos resultante. A Unidade 0774 era uma delas.
O local vira um fenômeno de público
O complexo foi usado pela última vez pelo Exército albanês para testes em 1999 e depois caiu em desuso. Foi reaberto apenas em 2014, graças ao jornalista italiano Carlo Bollino, que queria dar visibilidade a essa relíquia do passado isolado da Albânia.
"Eu decidi abrir o Bunk'Art 1 quando o Ministério da Cultura lançou um edital para ideias que celebrassem os 70 anos de independência da Albânia", disse à BBC Future após nossa visita. "Até então, não havia um local onde um turista ou mesmo um albanês pudesse conhecer os segredos do período comunista."
Ele diz que sentiu algo especial e forte em sua primeira visita. "Eu senti o arrepio de explorar um lugar misterioso e sombrio cheio de história."
Quando a unidade foi reaberta, em 2014, por um mês, foi um fenômeno de público - cerca de 70 mil albaneses a visitaram.
"O povo albanês só sabia que havia esse bunker, mas ficou sem ouvir falar nele durante tantos anos", diz Muco. "Como você pode ver, há casas ao redor daqui, até mesmo as pessoas que moram nessa área, quando chegaram aqui, ficaram surpresas. É muito impressionante para eles ver que há um prédio desses dentro da montanha".
Bollino tentou construir não apenas um museu - preservando o esconderijo do regime como se fosse uma cápsula do tempo - mas também acrescentando algo. Muitos dos cômodos foram transformados em instalações de arte, cada um mostrando um diferente aspecto do passado comunista ou o entorno austero do bunker.
Os cômodos renovados nesse complexo labiríntico foram preenchidos com o tipo de móveis e decoração da época. A equipe agora terminou de renovar mais de cem cômodos do bunker.
Muito do resto do complexo continua sem renovação ou simplesmente sem acesso - há uma base militar próxima em funcionamento, e a unidade ainda pertence oficialmente ao território do Ministério da Defesa da Albânia.
Um desafio e detalhes surreais
Bollino confessa que tem sido um enorme desafio. "Era difícil, de um ponto de vista logístico, porque o lugar é muito úmido e qualquer objeto que fica ali por alguns dias é coberto de mofo. Mas as maiores dificuldades foram culturais: recuperar documentos e objetos do passado comunista deu muito trabalho, mas ainda mais difícil foi superar o preconceito com um lugar no qual eu queria contar sobre o terrível período da história da população. Eu tive muita dificuldade para deixar claro que lembrar os acontecimentos do período comunista não significa ter saudades do período comunista."
Há vários detalhes surreais. O que parecem ser lixeiras com estrelas vermelhas, na verdade, são purificadores de ar, liberando oxigênio para combater o dióxido de carbono. As máscaras de gás estilo soviético - que a Albânia comprou quando ainda era próxima a Moscou - enfeitam os corredores, lembrando os visitantes do pesadelo que teria feito com que esse lugar abrigasse 300 pessoas temporariamente.
O complexo é confinado, mas não é pequeno. Em seu centro está um hall grande o bastante para centenas de pessoas. Nele, Hoxha e a elite do regime leriam discursos para aqueles presos no refúgio nuclear. Hoje, funciona ali um teatro com espaço para shows - há um pequeno bar no caminho -, que já recebeu bandas de jazz e rock.
O lugar está rapidamente se tornando uma das mais populares atrações turísticas do país. Bollino diz ter outros planos também.
"Meu próximo projeto é um dos corredores ao sul do Bunk'Art 1, no qual eu quero instalar uma exibição fotográfica com cenas da vida cotidiana, sempre em referência ao partido comunista. Será uma oportunidade para mostrar aos visitantes outra parte do país, que hoje desapareceu", conta.
"Em setembro, eu testarei uma espécie de teatro imersivo: vou reviver personagens do passado nos corredores do Bunk'Art, e os visitantes podem conhecer e interagir com eles. É o primeiro passo em direção a um projeto mais ambicioso, uma instalação de realidade virtual."
Até lá, o Bunk'Art vem se tornando uma razão para visitar Tirana. Senada Murati, parte da equipe que coordena o complexo, diz que tem havido interesse de visitantes do Reino Unido, dos EUA e da Nova Zelândia.
Muco diz que o Burnk'Art tentou se manter o mais politicamente neutro possível, sem se distanciar do isolamento da Albânia comunista. Acredita-se que, durante os 40 anos do governo de Hoxha, tenha havido 5.500 execuções e mais de 25 mil prisões. Os cidadãos albaneses seriam executados na hora se fossem pegos tentando escalar as cercas da fronteira do país.
"Eu acho que o museu precisa ser bem sensível", diz ela. "Nós apresentamos aqui o lado positivo e negativo do comunismo, para que as pessoas possam decidir. Alguns visitantes vêm com uma foto de Hoxha em seus bolsos."
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Future
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