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'Tem barricada aí?': o mapa alimentado por WhatsApp que desvia motoristas de bloqueios feitos por criminosos no Rio

Rua fechada por barricada no Rio - Divulgação/Tem Barricada Aí?
Rua fechada por barricada no Rio Imagem: Divulgação/Tem Barricada Aí?

Eduardo Carvalho - Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

07/12/2018 09h47

Roberto*, de 35 anos, desistiu de trabalhar como motorista de um serviço de transporte por aplicativo em São Gonçalo, na Grande Rio de Janeiro.

Acostumado a rodar pela localidade com mais de 1 milhão de habitantes, ele cansou de se sentir um potencial alvo da violência. Ter seu carro roubado era menos preocupante do que se deparar com barricadas erguidas por criminosos nas ruas, já que seu medo era de entrar ali e não sair mais.

"Ficava apreensivo, com paranoia de que pudesse acontecer alguma coisa: um conflito entre diferentes facções ou entre traficantes e a polícia", explica o ex-motorista, que já encontrou várias barricadas em seu caminho e foi vítima de assaltantes em pleno dia.

"Colocaram a arma na minha cabeça por volta das 11h30. A gente acha que vai ficar tranquilo por evitar rodar de noite, mas é surpreendido pela manhã. Eu tenho família, tenho filho", afirmou.

A chance era alta, pois ao menos 340 ruas do município apresentam este tipo de obstáculo, que serve para controlar ou evitar o acesso. Entulho concretado, lixo, sofás velhos, geladeiras e até grades com botijões de gás --as chamadas barricadas explosivas-- restringem a mobilidade de pedestres, reduzem a oferta de ônibus, táxis e outros serviços públicos.

O número de barricadas só ficou conhecido graças ao trabalho de duas jornalistas que desenvolveram a plataforma "Tem barricada aí?", um serviço que incentiva moradores de São Gonçalo, Niterói e Itaboraí, na região metropolitana do Rio, a denunciarem quaisquer tipos de obstáculos.

Os dados são coletados pelo WhatsApp e apresentados online para que motoristas saibam os locais com barreiras.

As criadoras, Thaís Gesteira, de 25 anos, e Isabela Giantomaso, de 23, trabalham no jornal "O São Gonçalo", periódico que administra a plataforma. Elas decidiram contabilizar as notificações depois de perceberem a quantidade diária enorme de notícias de barricadas e denúncias anônimas por telefone.

"Tinha bairro de 20 ruas que apresentava 15 barricadas. Algumas delas ficavam em acessos a rodovias importantes [como a BR-101, que liga o Rio de Janeiro à Região dos Lagos, onde fica Búzios]. O acesso ficou muito restrito e houve reclamação, com toda a razão", explica Gesteira.

'Se entrar, vai morrer'

Diversos moradores relataram que ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) não chegavam ao destino final, e ônibus e táxis tinham que interromper o percurso ao se deparar, por exemplo, com estruturas de concreto no meio da rua, forçando passageiros a seguirem viagem a pé.

Em bairros periféricos, como Jardim Catarina, um dos que mais apresentam denúncias de barricadas, frases como "se entrar vai morrer" estão pichadas nos muros.

Em agosto de 2017, Gesteira e Giantomaso decidiram divulgar um telefone celular para receberem mensagens com informações sobre as barricadas.

No primeiro dia de funcionamento, foram 150 notificações de diferentes pontos de bloqueio. As denúncias foram repassadas à Polícia Militar, que tentou fazer a remoção em operações com o Exército. "Mas o tráfico começou a anunciar: se tirassem uma barricada, iam construir duas. Se tirassem dez, iam montar 20. Houve uma queda nas denúncias depois disso", explicou Giantomaso.

As duas partiram então para um trabalho de investigação que resultou na plataforma digital, que é possível ser integrada a aplicativos de GPS.

Cada ponto no mapa representa uma rua com circulação impedida. Inicialmente, foram utilizadas fotografias, mas, por medo de que os locais das imagens fossem identificados, o serviço decidiu retirá-las, deixando apenas a descrição feita por moradores.

Segundo a assessoria de imprensa da Polícia Militar, há atuação em diversas comunidades para a retirada das barricadas, mas os criminosos "insistem com tais práticas subversivas", apesar da atuação da PM.

Migração de criminosos

O uso de barricadas é um problema antigo do Rio de Janeiro. Os bloqueios são usados em favelas e comunidades mais afastadas do centro da capital fluminense para impedir o acesso da polícia.

Um dos únicos veículos a vencer esses obstáculos é o chamado Caveirão, nome popular do carro blindado usado pelo Bope, o Batalhão de Operações Policiais Especiais.

Mas a tática se espalhou para outras cidades após o início das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras), que começaram a ser estabelecidas em 2008 e afugentaram da capital fluminense envolvidos com facções criminosas.

De acordo com João Trajano Sento-Sé, coordenador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), municípios como São Gonçalo, que já sofrem com problemas sociais - pouco mais de 10% do total da população estava empregada em 2016, segundo o IBGE (contra 40% na cidade do Rio de Janeiro, para efeito de comparação) - passaram a lidar com situações de violência.

"Na cidade, por exemplo, há envolvimento por parte do tráfico de drogas e também de milicianos. Em alguns casos, há uma terceira via: milicianos e forças de segurança atuantes que trabalham em conjunto com o tráfico", diz.

Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro apontaram que a apreensão de drogas em São Gonçalo aumentou 149% entre 2008 e 2017; houve ainda uma explosão de ocorrências de roubos no mesmo período, saltando de 8.597 para 21.037.

O índice de Letalidade Violenta praticamente se manteve estável, com alta de 5,5%. O indicador é considerado estratégico na mensuração de criminalidade e soma casos de homicídio doloso, mortes decorrentes de intervenção policial, latrocínio (roubo seguido de morte) e lesão corporal seguida de morte.

Ainda no ano passado, a Justiça denunciou 96 policiais do 7º Batalhão da Polícia Militar de São Gonçalo e outras 71 pessoas acusadas de tráfico de drogas na chamada "Operação Calabar".

De acordo com o Ministério Público Estadual, os traficantes foram acusados de pagar o chamado "arrego" aos agentes para evitar incursões em favelas. A investigação apontou que os PMs chegavam a ofertar serviços diversos a traficantes, como escoltas de um local a outro, e até alugavam armas da corporação, incluindo fuzis, aos traficantes.

Para Sento-Sé, da Uerj, a falta de segurança e de acesso a direitos e à Justiça deixa os moradores vulneráveis a esse tipo de ação. "Há grande negligência do poder público em prover a essa população canais de denúncia. Sem contar que essas áreas, em geral, são muito abandonadas. Podem até ter uma vida comunitária intensa, mas não têm acesso a instâncias como Ministério Público ou Polícia Civil bem equipada. O Estado até chega, mas não com ferramentas de garantia de direitos", complementa.

Ele ressalta sobre a necessidade de criar espaços de sociabilização em locais não assistidos por governos e de se oferecer serviços urbanos básicos, que dificultariam o controle pelo crime.

"Parece uma coisa abstrata, mas não tem nada de utopia e nem é caro. O mais difícil é dar o primeiro passo."

A Polícia Militar explica que há um trabalho feito pelo setor de inteligência para colher informações sobre bloqueios e que "ações para a retirada de barricadas são executadas periodicamente em diversas áreas do Estado do Rio de Janeiro".

A corporação reconhece que os criminosos "insistem em ocupar territórios urbanos e desestabilizam a ordem pública", mas afirma que se mantém incessante no combate a esses grupos e trabalha para a manter o direito de ir e vir dos cidadãos.

"Não sei se tem uma solução muito efetiva, sinceramente. É uma terra sem lei e há pessoas que acham que lá é o fim do mundo", afirma Thais. "(A cidade) está sempre deserta, nunca tem ninguém na rua, o dia todo. Parece uma guerra", diz o ex-motorista, que planeja sair de São Gonçalo o mais rápido possível.

*O nome real do entrevistado foi substituído para preservar sua identidade