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Nicósia: Como é viver na última capital dividida do mundo

Muitas ruas de Nicósia continuam divididas por trincheiras desde 1963 - EPA
Muitas ruas de Nicósia continuam divididas por trincheiras desde 1963 Imagem: EPA

Texto e fotos: Angelo Attanasio - Enviado especial da BBC News Mundo a Nicósia, Chipre

28/12/2018 12h37

Os confrontos étnicos entre cipriotas gregos e cipriotas turcos no início dos anos 1960 levaram à divisão de Nicósia, a capital do Chipre. Cinquenta e cinco anos depois, as duas comunidades continuam a viver uma atrás da outra.

Para ir tomar um café na casa de Elsie Slonim, você tem que enviar um pedido ao Ministério das Relações Exteriores de um Estado não reconhecido.

Em seguida, tem que dar seu passaporte para alguns militares armados que examinam o documento como se você fosse um suspeito perigoso.

E, finalmente, tem que dirigir por algumas ruas onde os únicos vizinhos são as tropas de um Exército que veio de outro país.

No entanto, enquanto os expressivos olhos azuis de Elsie Slonim acompanham o encadeamento de suas memórias, é fácil perceber imediatamente que a viagem valeu a pena.

Judia de pais austríacos e com um passaporte americano que a salvou do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, essa mulher elegante de 101 anos testemunhou alguns dos eventos mais importantes do século 20.

E ainda vive um deles.

Quando se casou - pela segunda vez - com um proprietário de terras turco-cipriota, ambos decidiram se estabelecer em Nicósia.

Desde então, Elsie é uma testemunha privilegiada da história da atual capital do Chipre.

Ela é a única civil que reside na zona militarizada que divide essa cidade em duas, a última capital dividida do mundo.

Dividida por mais de meio século

Em 30 de dezembro de 1963, o oficial do Exército britânico Michael Perrett-Young desenhou com um lápis uma linha verde no mapa de Nicósia, do extremo ao outro.

Mapa mostra a divisão de Nicósia - BBC - BBC
Mapa mostra a divisão de Nicósia
Imagem: BBC

Seu objetivo era frear os confrontos entre as duas comunidades, cipriotas gregos e cipriotas turcos, que em um mês deixaram mais de cem mortos nas ruas de um território sob controle britânico.

As disputas étnicas duraram 11 anos. Até que, em julho de 1974, a Turquia respondeu à tentativa de golpe no Chipre, financiada pela Grécia, com uma invasão militar da ilha.

No final daquele verão, cerca de 180 mil pessoas, um terço da população grega de Chipre, foram forçadas a deixar suas casas e se mudar para o sul. Ao mesmo tempo, cerca de 40 mil cipriotas turcos passaram para o norte ocupado.

O conflito terminou com mais de 4.000 pessoas mortas dos dois lados. O destino de outros 494 cipriotas turcos e 1464 cipriotas gregos, no entanto, deve permanecer desconhecido por muitos anos. Oficialmente, eles foram declarados desaparecidos.

Desde então, a maior parte da ilha é administrada pela República de Chipre, membro da União Europeia desde 2004, onde vive 80% da população, de origem grega.

Por outro lado, a República Turca de Chipre do Norte (RTCN), reconhecida apenas pela Turquia, ocupa um terço da sua extensão.

A fina linha verde desenhada por Perrett-Young em Nicósia, uma zona provisória de proteção com uma largura máxima de doze metros, foi alargada a toda a ilha, com uma extensão de cerca de 180 quilômetros, e tornou-se a fronteira que há 55 anos divide a capital entre a turco-cipriota Lefko?a, ao norte, e a greco-cipriota Lefkosia, ao sul.

A parte sul da cidade velha é um labirinto de becos, lojas de crochê para turistas e jardins de palmeiras e buganvílias.

Em todas as horas do dia, as mesas dos bares estão cheias de pessoas tomando café, a bebida favorita deste lado do Mediterrâneo e que permeia praticamente todas as interações sociais.

O silêncio é interrompido apenas pelos chamados à oração do muezim de Selimiye, a antiga Catedral de Santa Sofia, convertida na principal mesquita da parte cipriota turca da cidade antiga.

E é lá a que eu me dirijo, depois do controle rotineiro do passaporte.

Em torno dos altos minaretes, dos bazares de camisas turísticas e das tavernas de shawarma, a vida cotidiana se desenrola com a mesma tranquilidade da do outro lado.

Apenas as bandeiras vermelhas e brancas quase onipresentes penduradas nas casas, nas oficinas mecânicas dos imigrantes turcos e em quaisquer edifícios públicos me lembram insistentemente que estou na parte cipriota turca de Nicósia.

Mas nada me faria pensar que estou pisando em um território em conflito há mais de meio século.

Um cessar-fogo de mais de 44 anos

A elegante casa de dois andares onde Elsie Slonim passa seus dias tornou-se, ao longo dos anos, um museu de uma vida outrora agitada.

Uma imensa biblioteca cheia de livros em alemão, iídiche e inglês ocupa o vasto salão onde, diante de um uma xícara de café cipriota, ela descreve o sentimento de alegria e arrependimento que a dominou na primeira vez que viu a costa cipriota.

Era o verão de 1939 e Elsie e seu marido estavam prestes a desembarcar na ilha após uma viagem de navio dos Estados Unidos que durou várias semanas.

O antissemitismo assolava a Europa e a Segunda Guerra Mundial começaria em breve.

"Perdi vários tios e primos no campo de concentração de Auschwitz", lamenta. "Tive sorte porque cheguei a tempo."

A ilha era uma colônia do Reino Unido desde 1879 e permaneceria assim até 1960. Quando os britânicos se retiraram de lá, deixaram como legado a condução do lado esquerdo e duas enormes bases navais militares ainda ativas, que ocupam 3% do território.

Profunda desconfiança

A principal herança, contudo, não é tangível: uma profunda desconfiança entre as elites cipriotas grega e turca.

Essa desconfiança mútua e a interferência política da Grécia e da Turquia levariam a confrontos violentos entre as duas comunidades e a divisão de Nicósia para tentar detê-los. Sem sucesso.

Nicósia, capital de Chipre, está dividida desde 13 dezembro de 1963 - ANGELO ATTANASIO/BBC MUNDO - ANGELO ATTANASIO/BBC MUNDO
Nicósia, capital de Chipre, está dividida desde 13 dezembro de 1963
Imagem: ANGELO ATTANASIO/BBC MUNDO

Cinquenta e cinco anos depois, a poucos metros das buganvílias que desabrocham no jardim de Elsie Slonim, estende-se uma das áreas mais militarizadas do mundo.

De suas torres, mais de 40 mil soldados cipriotas turcos guardam a RTCN (República Turca de Chipre do Norte). Em frente, cerca de 12 mil soldados da Guarda Nacional Cipriota grega controlam a fronteira da República do Chipre.

"Sem foto! Sem foto!", grita um deles, debruçando-se para fora de uma antiga guarita pintada com as cores azul e branca da bandeira da Grécia.

Sua expressão revela tédio e insatisfação por uma tarefa que ele deve repetir várias vezes ao dia: afastar os turistas que querem lembrar-se dessa tediosa trincheira.

Atrás da guarita, guardada zelosamente por ambos os exércitos, estende-se uma faixa estreita de estradas malcuidadas e casas em ruínas; uma terra de ninguém onde só a cor dos capacetes azuis da ONU quebra a monotonia.

O acesso a essa zona é de responsabilidade exclusiva das forças de manutenção da paz da ONU.

Desde a divisão da cidade, os soldados da missão UNFICYP - uma das mais antigas da Organização das Nações Unidas -, espalhados em toda a ilha, asseguram que nenhum dos exércitos acrescente "nem mais um saco de areia em suas posições na linha de cessar-fogo", explica um oficial argentino desta missão.

Há várias décadas, não há registro de episódios violentos significativos. "Os conflitos são limitados a alguns gestos obscenos ou a uma pedra jogada pelos recrutas de um lado ou de outro", diz o responsável da UNFICYP, Peter Vanek, enquanto me acompanha ao aeroporto de Nicósia.

Abandonadas após a invasão turca de 1974, suas instalações não só se tornaram um símbolo da divisão de Chipre ao longo do tempo, mas também do fracasso das inúmeras tentativas de reunificação entre políticos cipriotas gregos e representantes do norte.

Desconfiança

Entre as iniciativas mais recentes, está o referendo de 2004 sobre a criação de uma república federal, proposto pelo então secretário da ONU, Kofi Annan, que morreu em agosto deste ano.

O resultado refletiu a divisão do país: 65% dos cipriotas turcos votaram a favor da proposta, enquanto a maioria dos gregos votou "não".

Para que prosperasse, era necessário que ambas as comunidades o aprovassem.

A última tentativa em selar a paz remonta a julho de 2017, quando o líder da RTCN, Mustafa Akinci, e da República de Chipre, Nicos Anastasiades, pareciam ter finalmente chegado a um acordo na cidade de Crans-Montana, na Suíça.

Muitos cidadãos de Nicósia foram às ruas celebrar o que seria um momento histórico.

No entanto, o acordo não foi adiante e os dois políticos ficaram sem se reunir novamente por 15 meses.

Novas gerações

"Cipriotas gregos não confiam nos cipriotas turcos porque continuam pensando que eles são um cavalo de Troia para os interesses turcos", diz Harry Tzimitras, diretor do PRIO Chipre Center (PCC), um centro de pesquisa independente formado por pesquisadores das duas comunidades.

Por outro lado, "os cipriotas turcos acreditam que, em um Estado federal hipotético, seriam considerados cidadãos de segunda classe", acrescenta.

Ele diz acreditar que os partidos políticos que governam nas duas comunidades se beneficiam dessa disputa e não têm real interesse em chegar a um acordo final.

No entanto, sua maior preocupação é que essa falta de confiança contaminou os jovens da ilha, especialmente os de origem grega.

Em um estudo publicado em 2016 pela PRIO sobre a chamada "geração pós-Annan" - ou seja, a que veio depois do referendo em 2004 - mais de 48% dos estudantes universitários cipriotas gregos entre 18 e 23 anos disseram nunca ter cruzado a fronteira ao norte, enquanto 43% fizeram apenas algumas vezes.

"Por um lado, já faz muitos anos que as duas comunidades não estão em contato", explica Mete Hatay, um dos autores do estudo. "Por outro, em todos esses anos, uma narrativa muito distorcida sobre a história da divisão acabou cobrando seu preço".

"A memória do que aconteceu ainda está viva, não pode ser apagada de um dia para o outro", acrescenta.

Verão de 1974

A lembrança daquele verão de 1974 também permanece na memória de Elsie.

A invasão do Exército turco e o confronto armado que se seguiu com a Guarda Nacional de Chipre, em 1974, atingiram a casa onde ela mora atualmente.

Elsie e sua família passaram três semanas no porão, onde tinham o essencial para resistir ao conflito, que duraria até meados de agosto daquele ano.

Quando saíram daquele refúgio improvisado, encontraram uma imagem sombria. Todos os seus vizinhos foram expulsos do bairro e a área estava sob vigilância das tropas turcas.

"Um jovem soldado nos viu", lembra Elsie, "e pediu ao comandante que nos deixasse ficar".

O pai do menino tinha sido condutor de trator na fazenda de David Slonim, o marido de Elsie. Um dia, ele sofreu um acidente enquanto trabalhava e David o encontrou, levou-o ao hospital e pagou por seu tratamento por um ano.

"Quando os militares ouviram a história, decidiram que poderíamos ficar e morar em nossa casa" , diz Elsie.

No entanto, o marido havia investido todas as suas economias em campos de limões que estavam sob ocupação militar.

"Meu marido viu os limoeiros morrerem um por um", explica Elsie. "Foi a única vez na minha vida que o vi chorar de forma inconsolável."

Ela teve que tirar o passaporte americano e, aos 57 anos, procurar trabalho em Nova York como empregada doméstica para ajudar a alimentar sua família.

"Éramos uma família rica. Da noite para o dia, perdemos todo o nosso patrimônio. Só sobrou esta casa", lembra ela, enquanto seu olhar se perde nos espaçosos cômodos.

Depois de alguns anos, quando suas forças físicas já estavam diminuindo, Elsie decidiu voltar a Nicósia e, desde então, esta casa vem sendo seu refúgio.

'Vítimas da situação'

Despeço-me de Elsie Slonim depois de ter recebido uma aula sobre a história ocidental do século passado.

Dou uma última olhada nas buganvílias de seu jardim e me dirijo para fora da zona militarizada.

Enquanto os dois recrutas, de pouco mais de 20 e poucos anos, vasculham seus arquivos em busca do meu passaporte, me passa pela cabeça a conversa que tive, recém-chegado à ilha, com Achilleas Demetriades, advogado que talvez seja o maior especialista na questão cipriota, por ter defendido dezenas de casos perante a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Além disso, durante 30 anos, até 2001, seu pai foi prefeito da zona sul de Nicósia e um dos políticos cipriotas gregos mais envolvidos na reunificação.

"Se você quer minha proposta de reunificação, eis aqui uma ideia simples", provoca o advogado.

"Em vez de construir monumentos para militares desconhecidos, por que as duas comunidades não se unem e constroem o monumento para os mortos desconhecidos?"

"Porque, afinal de contas", diz Demetriades. "Todos, de uma forma ou de outra, somos vítimas dessa situação."