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Crise na Venezuela: Os opositores de Maduro que prometem resistência também a Guaidó

Roberto Lameirinhas

De São Paulo para a BBC News Brasil

03/02/2019 06h44

Disputa por poder entre venezuelanos vai além da simples retirada do chavismo da presidência - o objetivo do grupo neste momento é pressionar um eventual governo de transição a marcar eleições no menor prazo possível.

Enquanto conta seus cadáveres e assiste apreensiva à aparente agonia do governo de Nicolás Maduro, a Venezuela tenta enxergar seu futuro político sob a direção de um bloco opositor unido por poucos elementos além do sentimento antichavista.

O ambiente socioeconômico, no plano interno, e a conjuntura regional, no externo, elegeram um líder improvável - o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, de 35 anos - para o que pode ser o maior triunfo da oposição em duas décadas. Autoproclamado "presidente interino" da república, Guaidó, no entanto, já atrai a desconfiança dos demais opositores.

"Os únicos que ainda não reconhecem Guaidó são Bolívia, Nicarágua e Capriles", provocou a publicação satírica El Chigüire Bipolar, ironizando Henrique Capriles - candidato presidencial derrotado por Hugo Chávez, em 2012, e por Maduro, em 2013 - pela suposta hesitação em apoiar a atual estratégia da oposição.

Fundador do partido Primeiro Justiça e declaradamente aspirante à presidência, Capriles declarou, logo depois da publicação do Chigüire, "inequívoco apoio" a Guaidó.

Além de Capriles, Leopoldo López (Vontade Popular, mesmo partido de Guaidó) e María Corina Machado (Vem Venezuela) eram nomes cotados para liderar a oposição unificada contra o chavismo.

López, desde 2008, tem sido acusado pelo governo venezuelano de delitos administrativos e políticos que o impedem de disputar eleições e hoje está em prisão domiciliar.

Corina Machado teve mandato de deputada da Assembleia Nacional, então de maioria chavista, cassado em 2014. Os três são apontados frequentemente por organizações internacionais de direitos humanos e governos estrangeiros como vítimas de perseguição política por parte do chavismo e potenciais candidatos à sucessão de Maduro.

"Nem sempre quem põe a mesa é quem faz a refeição", diz um diplomata latino-americano que tem familiaridade com a situação política da Venezuela.

"A avaliação dos partidos mais tradicionais da Mesa da Unidade Democrática (MUD, nome do bloco unificado de oposição) é que a ascensão repentina de Guaidó pode criar uma 'geração perdida' de quadros políticos que surgiram após o frustrado golpe contra Chávez, de abril de 2002. A ideia desse grupo de opositores é a de pressionar um eventual governo de transição a marcar eleições no menor prazo possível, deixando para a administração legitimada pelas urnas os planos de recuperação da destroçada economia do país e evitando que o 'presidente encarregado' se consolide como o herói que desbancou o chavismo."

Disputas internas

O insaciável apetite de grupos políticos pelo poder - e, consequentemente, pelo controle das válvulas das maiores reservas de petróleo do planeta - está na origem da fratura da sociedade venezuelana entre chavistas e antichavistas.

A crise do petróleo do início dos anos 70 enriqueceu a elite política do país, mas a baixa da cotação da commodity que se seguiu ampliou o número de miseráveis em progressão geométrica.

De modo parecido, o alívio social dos primeiros anos do chavismo virou poeira nos últimos tempos de escassez de produtos, hiperinflação, desemprego e 700 mil candidatos ao refúgio em países vizinhos, incluindo o Brasil. E os donos do poder também passaram a se sustentar mais nos quartéis do que nas urnas, razão pela qual Maduro é considerado por muitos, na Venezuela ou fora dela, um usurpador.

Em outras palavras, tanto os partidos da elite econômica pré-Chávez quanto a atual oligarquia bolivariana - a chamada "boliburguesia" - são repudiados pela população. Assim, os dois lados aproveitam para desgastar Guaidó.

O jovem líder nascido em La Guaira, nos arredores de Caracas, é acusado nos bastidores dos grupos políticos que detinham a hegemonia na era pré-Chávez de estar "a serviço da esquerda" e "fazer o jogo de Maduro" ao manter afastados do processo de transição os personagens que estiveram mais engajados no combate ao governo bolivariano.

E é pelo mesmo caminho, o da suposta excessiva moderação e do compadrio com figuras do chavismo, que as autoridades do atual governo também buscam desacreditá-lo. Nesse esforço se enquadra a intenção de Diosdado Cabello - um dos principais pilares da linha dura do chavismo - de tornar públicos os termos de uma reunião secreta que teria mantido com Guaidó.

Nas redes sociais e caixas de comentários do notíciário sobre a crise venezuelana, não é incomum a rotulação de Guaidó como "pau mandado" da "esquerda chavista". Muitos blogs da internet, alguns ligados ao governo de Maduro, ressaltam que o Vontade Popular, partido de Guaidó, é filiado à Internacional Socialista, portanto, "esquerdista".

Para que o brasileiro tenha uma ideia do que isso significa, é o mesmo status que o PSDB já buscou na entidade que reúne agremiações políticas de vários países comprometidas com o socialismo democrático, a social-democracia e os movimentos trabalhistas.

"Os US$ 20 milhões que nos são oferecidos pelos EUA como ajuda humanitária não é suficiente para um café da manhã", expressou no Twitter Henry Ramos Allup (AD), que reivindica nos bastidores o posto de presidente da Assembleia Nacional - pelo qual Guaidó alega ter direito de se encarregar da Presidência da República.

Ramos Allup presidia o Parlamento antes que o chavismo esvaziasse os poderes da AN e os transferisse a uma Assembleia Constituinte cuja formação foi boicotada pelos opositores.

A postagem foi interpretada por muitos como um sinal de descontentamento com a estratégia de Guaidó - baseada na oferta de anistia aos militares que abandonarem o apoio ao chavismo e o reconhecimento de um "governo de transição" pela comunidade internacional.

Repulsa aos partidos tradicionais tem origem na miséria dos anos 80 e 90

A crise do petróleo do início dos anos 70 enriqueceu a elite política do país, mas ampliou o número de miseráveis em progressão geométrica. A região da Grande Caracas inchou com a migração maciça de venezuelanos em busca de trabalho e passou a concentrar, espalhadas por suas encostas montanhosas, um terço da população da Venezuela.

A estabilidade política se baseava num acordo firmado entre os dois maiores partidos - Ação Democrática (centro-esquerda) e Copei (democrata-cristão). Pelo que era conhecido como "pacto de Punto Fijo", as duas forças políticas se alternavam no poder e controlavam os movimentos populares que poderiam causar turbulências sociais - em meio a quase 60% da população vivendo em situação de extrema pobreza, segundo dados de 1988 da Universidade Central da Venezuela.

A contenção de Punto Fijo se rompeu definitivamente em 1989, quando o preço internacional do petróleo estava em baixa e protestos contra medidas de austeridade se converteram em saques e o governo de Carlos Andrés Pérez (AD) ordenou às Forças Armadas que reprimissem o movimento, causando mais de 300 mortes - nunca se divulgou um número oficial.

O episódio, conhecido como "caracaço", aprofundou a repulsa à elite política. A revolta contaminou os quartéis e o tenente-coronel Hugo Chávez lidera uma tentativa de golpe contra Andrés Pérez em 1992. O movimento fracassa e Chávez é preso, mas sua retórica de rebeldia contra o sistema político ganha popularidade e desacredita os partidos tradicionais.

Anistiado, o militar chega à presidência pelo voto seis anos depois, ao vencer no segundo turno presidencial uma ex-miss universo que também concorria por um partido antiesblishment. A AD e o Copei estavam destroçados.

Cultivando o desprezo aos políticos da era de Punto Fijo, Chávez saiu vitorioso de uma tentativa de golpe contra ele em 2002 e de um locaute que quase destruiu a indústria petrolífera - única atividade produtiva relevante da economia.

Com o aumento da demanda internacional por petróleo, a cotação se aproximou dos US$ 100 por barril, a receita do país aumentou e situação social se estabilizou. Mas novas baixas no preço da commodity revelaram uma nova elite política, desta vez ligada ao chavismo, e fizeram a aversão popular contra o governo central recrudescer.

Sem o carisma ou a habilidade de Chávez - morto de câncer em 2013 -, Maduro se tornou o alvo das críticas e revoltas populares.

A Mesa da Unidade Democrática (MUD) uniu os partidos de oposição a Chávez - da AD e Copei aos centro-esquerdistas Movimento ao Socialismo (MAS) e Pátria Para Todos (PPT) - em 2006, embora tenha sido fundada oficialmente em 2008.

Mas seus foros sempre foram marcados por divergências profundas, deserções e defecções.