Por que políticos democratas temem o processo de impeachment de Trump?
Em tese principal beneficiário do impeachment do republicano Donald Trump, o Partido Democrata teme que levar o presidente a um julgamento político possa trazer mais prejuízos do que benefícios no médio prazo.
Depois de passar meses à beira de abraçar o processo de investigação contra Trump, na última semana de setembro, a presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, resolveu colocar em marcha o pedido de impeachment.
Segundo a acusação de um informante que recai sobre o presidente, ele se envolveu em uma espécie de barganha com o recém-empossado mandatário ucraniano, Volodymyr Zelensky: em um telefonema entre os líderes, no fim de julho, Trump pediu uma investigação dos negócios do filho de um dos principais pré-candidatos democratas à corrida presidencial, Joe Biden, no país. Só que dias antes ele havia ordenado o governo americano a reter cerca de US$ 391 milhões em ajuda militar à Ucrânia.
O enredo soa familiar aos americanos, já que Trump foi investigado por supostamente ter recebido informações de agentes do governo russo contra sua então oponente Hillary Clinton na campanha eleitoral de 2016. Diante das evidências coletadas pelo promotor Robert Mueller, no entanto, os democratas preferiram a cautela e não pediram o impeachment de Trump naquele momento.
Agora, no entanto, o partido aposta que há espaço para produzir um bom caso contra o republicano e - se não ejetá-lo do poder - causar danos políticos que o enfraqueçam no pleito para reeleição em 2020. A jogada, no entanto, é vista como arriscada pelos próprios americanos. De acordo com uma pesquisa feita a pedido da CBS News, no último dia 30, enquanto 34% dos cidadãos acham que os democratas têm a ganhar com o impeachment de Trump, outros 30% apostam que o principal beneficiário do processo é o próprio presidente.
A agenda de impeachment pode se sobrepor à da campanha
"Os democratas estão diante de um desafio. O impeachment é muito popular entre os eleitores de sua própria base, mas não tem sido popular com a média do eleitorado", afirma Keith Whittington, professor da Universidade Princeton.
A mesma pesquisa da CBS News mostra quão divisivo é o tema: 45% dos americanos não concordam com o processo de impeachment e 58% acreditam que Donald Trump não cometeu nenhuma ilegalidade. A recusa ao processo de impeachment, no entanto, já foi maior - em junho, quase 60% dos americanos eram contrários a isso.
Além disso, a mesma pesquisa mostra que 58% dos americanos acham que o Congresso ficará "distraído" demais pelo impeachment e não será capaz de votar leis em assuntos prioritários como imigração (prioridade para 26%) e saúde pública (prioridade para 21%).
"Os democratas arriscam cansar os eleitores que precisam conquistar com a conversa de impeachment. Podem negligenciar programas e políticas públicas que atrairiam mais esse eleitorado", afirma Benjamin Ginsberg, analista político da Universidade Johns Hopkins.
A saúde pública tem sido justamente um dos temas de maior destaque na pré-campanha democrata à eleição. Os 19 pré-candidatos do partido têm se dedicado intensamente ao tema e suas promessas vão de melhorias ao Obamacare - um programa lançado em 2010 para conter o preço dos seguros de saúde e expandir a cobertura para a população mais pobre - a propostas de criação de um modelo de saúde público universal que abolisse as companhias privadas de plano de saúde.
A agenda tem se tornado mais e mais popular entre os americanos. Em fevereiro de 2019, apenas 15% dos eleitores defendiam o fim do Obamacare, de acordo com um levantamento do jornal The Hill, especializado em cobertura política americana. O desejo dos votantes tem imposto derrotas a Trump, cuja promessa de campanha era acabar com o programa. No Senado, de maioria republicana, a proposta do presidente de pôr fim ao Obamacare acabou rechaçada.
Para o cientista político da Universidade Stanford Bruce Cain, no entanto, a mudança de foco pode representar um respiro importante para os eleitores. Cain argumenta que o discurso democrata pode soar radicalizado demais para a média dos americanos - ainda de acordo com o The Hill, apenas 13% dos eleitores defendem um modelo de saúde exclusivamente público.
"Se você me perguntasse há alguns meses se seria uma boa ideia sair dos assuntos de campanha para o tópico impeachment, eu diria não. Mas o debate não tem ido bem para os democratas. Eles precisam conquistar uma base de apoio liberal e foram para a esquerda demais em alguns assuntos. Eles têm dito que querem abolir empresas privadas de plano de saúde. Isso é uma posição eleitoralmente impopular", argumenta Cain.
"Eu estou inclinado a pensar que voltar o foco da atenção para a problemática personalidade de Trump e seu comportamento errático é uma distensão bem-vinda nesse momento até que os democratas eliminem os candidatos muito à esquerda das primárias", diz o especialista em política americana de Stanford.
Danos à imagem de Joe Biden
Se, por um lado, não há até o momento evidências de que Joe Biden, vice do então presidente Barack Obama, tenha se envolvido em atos de corrupção ou agido para beneficiar negócios privados de sua família, a grande atenção que o caso de seu filho Hunter deve atrair ameaça ferir a candidatura do democrata. Biden, de acordo com Ginsberg, "é hoje o favorito para bater Trump".
Com um perfil mais moderado entre os democratas, Biden estaria, em tese, em posição mais privilegiada para atrair o republicano insatisfeito com Trump. Desde que não cole em sua imagem a ideia de corrupção.
Biden tem uma histórica familiar trágica, que ele rememora em Promise me, Dad, sua autobiografia. Em 1972, assim que foi eleito senador pela primeira vez, ele perdeu a mulher e a filha caçula do casal em um acidente de carro. Os dois filhos mais velhos, Beau, então com 3 anos, e Hunter, com 2, sobreviveram com graves ferimentos. Biden foi por um longo tempo o único responsável pela criação dos meninos.
Enquanto Beau se tornou uma figura talhada para suceder o pai na política, Hunter cresceu um adulto com problemas de alcoolismo e dependência química.
Porém, Beau não foi capaz de mostrar seu potencial político. Ele morreu em 2015, aos 46 anos de idade, vítima de um câncer.
Quanto a Hunter, há evidências de que tenha usado seu principal ativo - o nome do pai - para obter sucesso na carreira. Ele se tornou lobista e, em 2014, acabou integrado ao conselho diretor de uma empresa de gás ucraniana, a Burisma Holdings, envolvida em acusações de corrupção e lavagem de dinheiro.
Ao mesmo tempo, como vice-presidente, Biden pressionava o governo ucraniano a combater a corrupção, que drenava os recursos americanos injetados no país para fazer frente às investidas militares russas. O democrata teria, inclusive, pressionado especificamente pela saída de um procurador acusado de favorecer os donos da Burisma em seus negócios suspeitos.
Embora estivessem aparentemente em lados opostos no jogo ucraniano e aleguem que jamais conversaram sobre negócios, a história entre pai, filho e administração americana soa como uma fragilidade relevante no currículo de alguém que deseja ser presidente dos Estados Unidos.
"Com o impeachment, Biden ficará na incômoda posição de ter que se explicar a todo momento", afirma Ginsberg.
Vitimização de Trump e 'efeito Temer'
Nunca na história americana um presidente foi retirado da cadeira após passar por um processo completo de impeachment. Richard Nixon, combalido pelo escândalo do Watergate, acabou por renunciar antes de enfrentar julgamento pelos senadores da República, em 1974. Os outros dois presidentes americanos que enfrentaram processos semelhantes, Andrew Johnson (1868) e Bill Clinton (1999), mantiveram-se em suas cadeiras.
A renúncia, no entanto, é considerada por especialistas uma saída muito improvável para alguém de personalidade confrontativa, como Trump.
Na verdade, nesta última quinta-feira, ele dobrou a própria aposta e abertamente pediu que a China, além da Ucrânia, investigue os negócios do filho de Joe Biden em seu país.
"Bem, eu acho que se eles fossem honestos, eles (autoridades ucranianas) iniciariam uma grande investigação contra os Biden. É uma resposta simples. Eles devem investigar os Biden. Da mesma maneira, a China deveria iniciar uma investigação sobre os Biden. Porque o que aconteceu na China foi tão ruim quanto o que aconteceu na Ucrânia", atacou Trump.
Com o gesto, o presidente americano pretende mostrar à opinião pública que não cometeu qualquer ilegalidade na conversa com o presidente ucraniano e que a tentativa de impichá-lo é apenas um ardil político dos democratas. Por ora, além de reforçar sua posição de pedir ajuda a países estrangeiros para investigar seu adversário, que ele alega ser corrupto, Trump tem usado as redes sociais para disseminar a ideia de que está sendo submetido a um processo injusto e arriscado para o país por políticos que apenas pretendem obter vantagem eleitoral.
"Os desocupados democratas deveriam focar em melhorar o país, e não desperdiçar o tempo e a energia de todo mundo com bobagens, que é só o que eles têm feito desde que eu fui estrondosamente eleito em 2016. Arrumem um candidato melhor dessa vez, vocês vão precisar!", tuitou Trump no último dia 2, deixando explícito o início da estratégia de vitimização.
"Tudo o que os democratas desocupados têm feito é focar no impeachment do presidente por ele ter tido uma ótima conversa com o presidente ucraniano. Ruim para o país!", afirmou Trump, ainda no último dia 2. Na semana passada, tão logo a presidente da Câmara, deputada democrata Nancy Pelosi, anunciou o início dos trabalhos de impeachment, ele tuitou "president harassment", algo como "assédio ao presidente".
"Trump certamente tentará usar o impeachment como prova de que os democratas estão obcecados em removê-lo do cargo a qualquer custo e que priorizam esse desejo acima de qualquer outra coisa. Como ele mesmo não estava formulando muita política pública, é difícil saber quão eficiente vai ser esse argumento. Mas é provável que o discurso se torne mais convincente se houver uma crise econômica e o presidente puder argumentar que os democratas estão mais focados em derrubá-lo do que em ajudar o país", afirma Whittington, professor da Universidade Princeton.
Nesse caso, o risco é que os eleitores punissem os patrocinadores do impeachment por estarem insatisfeitos com os rumos do país em meio à crise política. Algo parecido com o que aconteceu quando Michel Temer substituiu Dilma Rousseff, mas o país não se recuperou da crise econômica. Tanto MDB quanto PSDB, os dois partidos fiadores da retirada de Dilma da Presidência, acabaram encolhendo severamente nas eleições de 2018, quando sofreram também com o sentimento anticorrupção e antissistema do eleitorado.
A comparação, no entanto, tem limites. As circunstâncias dos dois países são hoje muito diferentes. Os Estados Unidos passam por um ciclo de dez anos de crescimento e gozam hoje de pleno emprego. O Brasil pós-Dilma enfrentava recessão econômica e taxa de desemprego acima dos 10%.
Mas diante da animosidade no Congresso, a disputa entre republicanos e democratas pode levar o país a um novo shutdown - circunstância em que o Orçamento público não é aprovado pelos legisladores e a máquina pública americana é paralisada, inclusive com suspensão de salários do funcionalismo público e de pagamento a fornecedores. Trump poderia tentar lançar a culpa sobre a Câmara, ocupada com impeachment em vez de se dedicar ao orçamento.
Democratas são minoria no Senado e Trump deve ser absolvido
Com maioria republicana no Senado e considerando as informações levantadas até agora, analistas políticos têm sido céticos sobre a possibilidade de que Trump seja apeado do cargo. Assim como acontece no Brasil, nos Estados Unidos cabe ao Senado dar a palavra final sobre o presidente em processo de impeachment. E o afastamento definitivo depende de maioria qualificada de votos - dos 100 senadores, 67 teriam que votar a favor do impedimento de Trump. Os democratas contam com apenas 45 representantes na Casa e há dois independentes.
"É muito improvável que os Democratas consigam atrair 20 senadores republicanos para votar a favor do impeachment, ainda que todos os 45 democratas fechem questão sobre isso. Ainda assim, algo parecido aconteceu no processo de impeachment de Nixon, quando um número suficiente de senadores republicanos foi ao presidente dizer que estava convencido de sua culpa e que ele seria condenado no Senado. Então, é possível que as evidências tenham efeito semelhante dessa vez, desde que o caso seja robusto e claro o suficiente, mas não me parece provável. E se o Senado não condenar Trump, isso certamente virará uma vantagem competitiva pra ele", afirma o cientista político John Aldrich, da Universidade Duke.
O presidente americano poderia usar a absolvição no Senado como atestado de inocência em sua campanha por reeleição.
Os democratas, no entanto, pretendem colocar essa visão em disputa.
"Eles certamente dirão que os republicanos no Congresso estão protegendo um presidente criminoso e que os eleitores deveriam limpar não apenas a Casa Branca como o próprio Congresso", afirma Whittington.
O sucesso eleitoral não apenas do candidato a presidente democrata, mas dos legisladores que tentarão obter cadeiras no Congresso em 2020 depende do potencial de convencimento do partido em relação aos malfeitos de Trump.
"Mesmo se o impeachment não for bem-sucedido eu penso que Trump está em risco. Não com seu eleitorado ultraconservador, esses vão ficar, mas com os republicanos mais bem-educados, mulheres à direita, republicanos mais modernos. Esses podem questionar sua lealdade a Trump com todas as revelações que o impeachment pode trazer", diz Cain.
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