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Cristina discreta e liberalismo 'peronista' de Macri: os capítulos finais da disputa eleitoral na Argentina

Mauricio Macri e Alberto Fernández: presidente ficou quase 16 pontos atrás do rival peronista nas primárias - JUAN MABROMATA/AFP
Mauricio Macri e Alberto Fernández: presidente ficou quase 16 pontos atrás do rival peronista nas primárias Imagem: JUAN MABROMATA/AFP

Camilla Veras Mota - Enviada da BBC News Brasil a Buenos Aires - @cavmota

24/10/2019 16h52

Enquanto o presidente Mauricio Macri tenta aliviar os efeitos da crise com medidas como congelamento de preços, chapa da ex-presidente Cristina Kirchner cresce acenando para eleitores de centro.

No dia 12 de agosto de 2019, muitos argentinos que tinham algum dinheiro no banco decidiram sacar as economias e levá-las para casa. Especialmente as poupanças em dólares, permitidas pela legislação local.

Filas se formaram na frente das agências.

Uma "corrida insana", na descrição da mineira Rachel Oliveira, que vive há quatro anos em Buenos Aires, motivada pelo medo "de que alguma medida do governo fosse capaz de, por exemplo, bloquear contas".

Essa apreensão aparece nas estatísticas. Apenas naquela segunda-feira, o peso argentino perdeu 23% do valor em relação à cotação de sexta e chegou a 57,3 por dólar.

Um dia antes, o resultado das eleições primárias dera ampla vantagem ao candidato de oposição: Alberto Fernández conquistou 47,6% dos votos, quase 16 pontos percentuais à frente do presidente Mauricio Macri, que tenta reeleição.

Como são obrigatórias, as PASO (sigla para "Primarias, abiertas, simultáneas y obligatorias") são consideradas uma espécie de prévia das eleições oficiais.

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Alberto Fernández e apoiadores logo após o anúncio do resultado das primárias: dia seguinte foi marcado por desvalorização do peso e queda na bolsa argentina
Imagem: Agustin Marcarian/Reuters

Talvez por isso, o clima de polarização que se desenhava quando a ex-presidente Cristina Kirchner anunciou em maio que se candidataria como vice na chapa de Alberto Fernández hoje é de "relativa tranquilidade".

Para muitos argentinos, o resultado das eleições deste 27 de outubro já estaria definido.

"Parte da população acha que já vem outro governo", diz a cientista política Maria Esperanza Casullo. "A incógnita agora é sobre o que vai acontecer depois da posse."

Considerado um peronista moderado, Alberto Fernández tem tentado convencer os eleitores de centro de que a vice "famosa", que foi presidente da Argentina entre 2007 e 2015, não exerceria funções além do cargo.

Em entrevista no dia 10 de outubro, chegou a dizer que a ex-presidente teria "ingerência zero" na definição dos ministros de Estado ou de peças-chave da equipe caso a chapa fosse eleita.

O candidato tem buscado sinalizar disposição para dialogar com setores além daqueles tradicionalmente ligados ao peronismo e ao kirchnerismo, como sindicatos e movimentos sociais, e vem se reunindo com empresários nas últimas semanas — muitas vezes na companhia de Matías Kulfas, um de seus principais conselheiros econômicos.

Mas até o momento deu poucas pistas do que deve nortear a política econômica caso o resultado das urnas confirme o que apontam as pesquisas ou de medidas mais concretas para tentar tirar a Argentina da crise.

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Pobreza avançou e atinge 35% da população do país
Imagem: Spencer Platt/Getty Images

Cristina discreta

Cristina Kirchner surpreendeu o mundo político ao anunciar, no dia 18 de maio, em vídeo no Facebook, que seria vice na chapa de Fernández.

Chamou atenção não apenas o fato de a senadora abrir mão da cabeça da chapa, mas de se aliar a um antigo desafeto político.

Fernández foi chefe de gabinete de Néstor Kirchner, ex-presidente e marido de Cristina morto em 2010, e se manteve no cargo no início do mandato da ex-presidente.

Desentendimentos com Cristina, entretanto, motivaram seu pedido de demissão oito meses depois da posse, durante o que ficou conhecido como "conflito no campo".

Esse foi um período de grande tensão entre o governo e o setor agropecuário, com greves e paralisações, catalisado pela aprovação da Resolução 125, que permitia que o Estado retivesse parte da receita das empresas que exportavam soja — commodity cujo preço estava em alta em 2008.

De fora, Alberto foi um crítico contundente da administração de Cristina.

É visto como mais pragmático e conciliador, enquanto a ex-presidente é descrita por muitos eleitores como mais ideológica.

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Cristina, Alberto e Axel Kicillof (à esq.), que concorre ao governo da Província de Buenos Aires: 'quando aparece a possibilidade de ganhar, aumentam os incentivos para a unidade do peronismo', diz cientista política
Imagem: Agustin Marcarian/Reuters

Os dois voltaram a se aproximar em 2017, logo após as eleições legislativas. Com o segundo maior número de votos, a ex-presidente conseguiu eleger-se senadora, mas ficou atrás do candidato macrista, Eduardo Bullrich — uma derrota dura para a oposição.

Desde então, afirma a cientista política Maria Esperanza Casullo, o movimento peronista vem tentando se reorganizar.

"O peronismo, pelo menos até agora, tem vivido esses ciclos: quando perde, se quebra; quando aparece a possibilidade de ganhar, aumentam os incentivos para a unidade."

Assim, Cristina tem mantido uma postura mais discreta durante a campanha.

Passou parte dos últimos meses em Cuba, em visita à filha Florencia, que está fazendo um tratamento na ilha. Quando na Argentina, dedicou parte do tempo à promoção de seu livro, Sinceramente, lançado neste ano.

Governo liberal com receituário peronista

"Podemos resumir a situação da Argentina hoje (a perspectiva de vitória do peronismo nas urnas) em dois fatores: a situação econômica e a unidade do peronismo", avalia Lucas Romero, cientista política e diretor da consultoria Synopsis.

Nos quatro anos de governo de Mauricio Macri, praticamente todos os indicadores econômicos da Argentina pioraram. A inflação chegou a 55%, o desemprego superou 10% da população economicamente ativa, o peso sofreu forte desvalorização e o endividamento externo cresceu.

Em maio de 2018, Macri pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) — uma instituição de forma geral impopular na América Latina, mas extremamente mal vista entre os argentinos.

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Eleição de Macri em 2015 marcou o rompimento de um ciclo de 12 anos de gestão dos Kirchner e a substituição de um governo considerado populista por outro de perfil reformista
Imagem: Spencer Platt/Getty Images

Uma brasileira que está há 10 anos em Buenos Aires e que preferiu não se identificar diz que "nunca viveu tão mal" na Argentina quanto hoje.

Depois de cortar custos considerados supérfluos — viagens, refeições fora de casa — e de "remodelar" o carrinho do supermercado com produtos mais baratos, recentemente ela e o marido, que é argentino, tiveram de cancelar o plano de saúde para que conseguissem pagar as contas.

Ela trabalha com tradução e revisão de textos e ele é arquiteto. Há algum tempo o casal aluga para turistas um apartamento que tem no bairro nobre de Palermo, mas, com o aumento da oferta, os preços têm caído.

"Os aluguéis são um bom complemento, mas hoje quem tem um quartinho colocou para alugar", diz ela, que viu os valores das diárias recuarem de cerca de US$ 70 para US$ 55 nos últimos meses.

Em meio à onda de indicadores negativos, o presidente argentino anunciou, em abril, medidas que vão contra a agenda liberal pregada por seu governo, entre eles o congelamento de preços de 60 itens de consumo.

Quatro meses depois, após o resultado das primárias, um novo pacote lançou mão de uma série de medidas mais parecidas com o receituário peronista — reajuste extraordinário do salário mínimo, bônus especial para o funcionalismo público e uma tentativa de congelamento dos preços de combustíveis até outubro.

Macristas, kirchneristas e peronistas

A tendência apontada pelas pesquisas nos últimos dois meses, entretanto, não mudou.

Macri mantém cerca de 33% das intenções de voto, lembra o cientista Lucas Romero, um percentual muito próximo daquele registrado no primeiro turno em 2015, 34%.

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Comício de Macri em 19 de outubro: presidente concentra voto anti-kirchnerista
Imagem: ALEJANDRO PAGNI/AFP

Isso mostra que o eleitorado do presidente, que foi eleito em 2015 como um "candidato anti-kirchnerista", como descreve Lucas Romero, segue votando nele.

O crescimento da chapa de Cristina e Alberto — a "fórmula Fernández-Fernández", como dizem os argentinos — deu-se com a conquista de eleitores de centro.

Essa migração fica clara ao se avaliar o desempenho do terceiro lugar nas pesquisas.

Em 2015, o peronista Sergio Massa conquistou o terceiro lugar no primeiro turno com cerca de 21% dos votos. Neste ano, Roberto Lavagna, outro peronista "moderado", ocupa a terceira posição na disputa eleitoral com apenas 8,5% das intenções de votos, conforme o diretor da consultoria Synopsis.