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'Chile hoje é um país zumbi': a visão de colunista do país em crise

Para Müller, os saques, incêndios e ataques à infraestrutura pública são uma demonstração de que hoje, no Chile, impera a anarquia - Getty Images
Para Müller, os saques, incêndios e ataques à infraestrutura pública são uma demonstração de que hoje, no Chile, impera a anarquia Imagem: Getty Images

Fernanda Paúl - BBC Mundo

03/12/2019 07h40

Para John Müller, jornalista chileno radicado em Madri, o que está acontecendo em seu país é um 'suicídio' que põe em perigo uma reputação internacional e estruturas construídas por anos.

Lá se vão mais de 40 dias desde o início da crise política e social mais importante das últimas três décadas no Chile.

Para muitos protagonistas das manifestações que marcaram esses dias, o país sul-americano "acordou" - de um sistema injusto que promove a desigualdade há muito tempo.

Uma leitura à qual o jornalista chileno John Müller se opõe radicalmente. Para esse especialista em questões econômicas e internacionais e colunista de jornais como El Mundo e El Mercurio, "não faz sentido protestar contra a desigualdade e destruir o patrimônio comum" - assim, para ele, saques e incêndios demonstram que a desigualdade não explica a turbulência da qual o país virou cenário.

Müller vê o país vivendo um estado diferente: o de anarquia.

As consequências dessa crise não serão poucas, pois o Chile perdeu uma reputação que levou anos para ser construída, ele adverte.

"A grande perda é de reputação. O Chile não pode mais dizer que é diferente do seu entorno", diz ele, referindo-se à América Latina.

De seu escritório em Madri, Espanha, onde mora há vários anos, ele conversou com a BBC News Mundo sobre os eventos que estão marcando a história recente do Chile.

BBC News Mundo - Como você vê a situação atual do Chile?

John Müller - Atualmente há no Chile um estado de anomia social, de anarquia, com falta de respeito às autoridades causada pelo descrédito nas principais instituições do país e, principalmente, nas instituições responsáveis - pela manutenção da ordem pública.

BBC News Mundo - Não é também o despertar de uma sociedade que considera o sistema econômico e político injusto e desigual?

Müller - O argumento da desigualdade, que todos levantaram a princípio, mudou com o tempo. Porque quando se acredita que existe desigualdade, não se ataca nem se destrói a infraestrutura, a rede de distribuição de alimentos... Não se destrói o pouco que se tem.

Não faz sentido protestar contra a desigualdade e destruir o patrimônio comum.

BBC News Mundo - Você, então, apoia o sistema político e econômico chileno?

Müller - O único bem público que se pede aos políticos é que eles governem. E, no Chile, o governo não estava governando - conseguiu aprovar uma lei em 18 meses, em um Congresso onde não tem maioria.

Isso significa que o sistema político é disfuncional para um mundo moderno que não pode aguardar tanto tempo pelo bem que espera. Os chilenos esperavam por reformas fundamentais, estavam esperando por um governo, e isto não estava sendo feito com eficácia.

Em segundo lugar, há uma importante questão econômica, uma vez que os níveis de prosperidade e crescimento que os chilenos esperavam não estavam sendo gerados. Isso é evidente.

Finalmente, o que entrou em crise é o modelo social. Aqui, justifico: a desigualdade é realmente um fator importante.

Mas não apenas a desigualdade de renda, mas a de tratamento. Essa desigualdade que as pessoas veem quando um senador não vai para a cadeia, mesmo que estivesse dirigindo bêbado; ou quando pessoas que cometem crimes de corrupção se livram ao comparecerem a um curso de ética.

Esse tipo de desigualdade tem a ver com o acesso à Justiça, aos serviços de saúde e principalmente com o tratamento. Essa é a desigualdade mais irritante do Chile.

BBC News Mundo - E é ela que faz com que aconteça essa turbulência social...

Müller - Acho que existem vários fatores. Há um que ninguém cita, que é a seca. O Chile está em situação de seca há muito tempo.

Já foi demonstrado que por exemplo, no Egito, que a seca significava a queda dos governos na época dos faraós. A seca produz nas pessoas um sinal que não são é percebido racionalmente, que estressa o comportamento das pessoas. E isto pode ter sido também um fator (na situação atual do Chile).

BBC News Mundo - Então, na sua opinião, as demandas sociais realmente têm pouco a ver com as manifestações?

Müller - Acho que houve apenas uma manifestação pacífica no Chile, que mobilizou mais de 1 milhão de pessoas.

O resto terminou em uma violência incomum. A violência vista no Chile não é uma violência normal. Tenho conversado com especialistas espanhóis sobre controle de distúrbios, sobre desordens públicas, e eles me dizem que o que veem no Chile é mais uma guerra do que alguns distúrbios.

BBC News Mundo - Vimos que a palavra 'guerra' é um pouco complicada. O presidente Piñera (Sebastián Piñera, mandatário chileno) acertou em usá-la?

Müller - O impacto que causou foi completamente contraproducente. Do mesmo modo que foi contraproducente decretar estado de emergência tão prematuramente e retirar os soldados (dos quartéis) quando eles não estavam preparados.

Penso que o presidente Piñera cometeu inúmeros erros que aprofundaram a seriedade da crise.

Ele usou a palavra "guerra", mas esqueceu de ter deixado de maneira muito evidente diante da opinião pública que o que aconteceu na sexta-feira 18 de outubro não foi uma manifestação espontânea de insatisfação popular.

Ninguém queima 40 estações de metrô espontaneamente. Para mim, o episódio de 18 de outubro no Chile lembrou os ataques do metrô em Madri em 2004. Não pelo número de vítimas, mas pela capacidade de coordenação dos ataques. No entanto, o governo não foi capaz de colocar isso na mesa.

BBC News Mundo - Mas o ataque em Madri foi um ato terrorista...

Müller - Parece-me que o ato de incendiar Santiago também foi terrorista. E o governo deveria ter dito isso claramente.

Mas, em vez disso, ele decretou o estado de emergência e levou os militares para a rua, construindo assim uma nova realidade política e não dando tempo para digerir o que havia acontecido no metrô.

BBC News Mundo - Que autocrítica a classe dirigente chilena deve fazer?

Müller - No Chile, o presidente agiu mal, se apressou, recebeu maus conselhos. Não estava esclarecido sobre o que devia fazer e também não teve coragem de tomar decisões difíceis.

A oposição, porém, tem sido desleal institucionalmente. Ela demorou mais de 40 dias para declarar oficialmente que rejeitava a violência. E os carabineros (a polícia) é (hoje) uma força destruída, que provavelmente terá que ser reorganizada da base.

Depois do desprestígio por conta da corrupção e dos (abusos contra os) direitos humanos, os carabineros desaparecerão e serão substituídos por outras forças armadas.

BBC News Mundo - Por que não foi possível controlar a violência no Chile?

Müller - Aqui há forças radicais que agem como uma guerrilha urbana. Uma grande parte da população chilena está exposta ao narcotráfico e isso significa que na República do Chile há uma república do narcotráfico que vem crescendo ao longo do tempo.

BBC News Mundo - No mundo, parece surpreendente o que está acontecendo no Chile?

Müller - O Chile tem surpreendido, porque todos pensavam que o país era como a Israel da América do Sul.

Assim como Israel é a única democracia no Oriente Médio, todos pensavam que o Chile era a exceção na América do Sul ? acostumada a golpes, rupturas institucionais, desordens públicas, populismo etc.

A grande perda do Chile é reputacional. As pessoas não podem mais dizer: "O Chile está há 40 anos em um caminho de melhora de suas instituições, de sua riqueza, da força de sua democracia". Isso quebrou, acabou.

O Chile não pode mais dizer que é diferente do entorno em que vive. O Chile não pode mais dizer que é uma boa casa em um bairro ruim. Isso não é mais verdade.

BBC News Mundo - Mas há quem diga que, a longo prazo, esse estalo social foi necessário, que a partir dele um país melhor será construído.

Müller - Parece-me que são pessoas iludidas. O que Maximilien Robespierre pode ter pensado no ano em que a Revolução Francesa começou e cortaram a cabeça do rei? Bem, que as coisas iriam melhorar. Mas ele nunca imaginou que sua própria cabeça cairia rolando dois anos depois na mesma cesta em que a do rei havia caído.

A ideia de progresso é muito profunda nas pessoas, mas isso não significa que o futuro será melhor que o presente.

E isso, infelizmente, não está claro para as novas gerações. Chegamos a um estágio de progresso tecnológico global que sugere que a água sempre sai quente da torneira. Com isso, ninguém pensa que a água nem sempre saiu quente - e às vezes nem mesmo saiu água.

BBC News Mundo - Você não acha, então, que o Chile despertou (como diz uma frase recorrente nas manifestações)?

Müller - O Chile não despertou. O Chile teria acordado se os chilenos estivessem mais felizes e mais conscientes de suas responsabilidades, direitos e obrigações.

Mas o que existe hoje é um país zumbi, que dormiu pouco na noite anterior, que passou a noite assustado porque houve saques.

Nas populações marginais, a situação é horrível, as pessoas precisam pegar um ônibus por 3 horas para chegar ao trabalho. Em 17 de outubro, o Chile era um país; no dia 19, outro.

Não tenho um registro histórico de um lugar onde as coisas mudem de maneira radical de um dia para o outro como esta. Nem mesmo a queda do muro de Berlim produziu uma mudança tão radical.

O (caso do) Chile é inédito. Foi suicídio, em 42 dias não houve mais do que perdas. O patrimônio público e privado não cresceu. Foi destruído. A infraestrutura foi queimada em bairros onde ela nunca mais será reconstruída.

Acho muito irritante ver como há pessoas que se viraram de lado quando isso aconteceu. Há pessoas que colocam mais lenha na fogueira em vez de agir com prudência.

O filósofo inglês Edmund Burke acreditava que a vitória do mal não ocorre pela força do mal em si, mas pela omissão daqueles que são a favor do bem em sair em sua defesa. E no Chile, uma grande parte das pessoas permanecem na maioria silenciosa.

BBC News Mundo - Nos últimos meses, a América Latina tem sido cenário de várias manifestações em diversos países. É possível dizer que esses protestos têm algo em comum?

Müller - Penso que a América Latina está assim por conta das políticas dos bancos centrais do hemisfério norte após a crise de 2008.

Muitos capitais investidos na América Latina saíram. Isso causou no início deste ano previsões de taxas de crescimento muito baixas. E quando a América Latina, que é um continente com muita pobreza, não cresce a uma taxa superior a 4 ou 5%, falha em dar um caminho de esperança para sua população.

Então, a população se desespera e essas coisas acontecem.

BBC News Mundo - Piñera vai continuar em seu mandato pelos próximos dois anos?

Müller - Deveria continuar. A ruptura da institucionalidade é um erro que traria problemas piores, seria o pior sinal. Além disso, abriria um precedente: o sucessor de Piñera já estaria ameaçado de que a primeira coisa que desejariam fazer é derrubá-lo.

BBC News Mundo - Qual é o caminho para sair desta crise?

Müller - A saída é a lealdade institucional por parte dos partidos políticos. Penso que, se a ordem pública continuar se deteriorando, eles terão que recorrer a algum tipo de estado de exceção, estado de emergência ou cerco.

Com cortes a algumas liberdades temporariamente e uma situação que encerre o estado de anomia. É muito difícil sair dessa situação de perda de respeito pela autoridade sem colocar-se enfaticamente, sem bater com força na mesa.

E, é claro, o que o governo não quer assumir é que uma intervenção desse tipo pode custar vidas humanas, infelizmente.

Uma democracia não é menos democrática por garantir o direito de todos os cidadãos.