Por que recusa de Trump em classificar matança de armênios como genocídio é tão polêmica
Governo Trump contraria votação no Senado e, sob pressão turca, se nega a reconhecer matança de armênios como genocídio; entenda como fatos ocorridos há mais de cem anos ainda têm forte importância nas relações internacionais.
Em nova polêmica na política externa de Donald Trump, o governo americano afirmou nesta terça-feira (17/12) não considerar a matança de armênios, em 1915, um genocídio - contrariando uma votação unânime ocorrida no Senado americano na semana passada.
Naquela votação, os senadores haviam aprovado uma resolução que reconhecia a matança em massa de estimados mais de 1 milhão de armênios pelo Império Otomano como um ato genocida. A medida havia enfurecido a Turquia (país descendente do Império Otomano), que nega que as mortes armênias tenham tido caráter genocida.
Já a Armênia, por sua vez, afirma que a matança no século passado foi uma tentativa de eliminar um grupo étnico.
Agora, a posição turca ganhou o respaldo de Trump.
"A posição do governo não mudou. Nossas visões estão refletidas em um comunicado definitivo do presidente sobre esse tema, em abril", afirmou nesta terça a porta-voz do Departamento de Estado americano, Morgan Ortagus. No comunicado em questão, que marcava o aniversário da matança, Trump rendia tributo às vítimas "de uma das maiores atrocidades em massa do século 20", mas sem usar a palavra "genocídio".
Pressão turca
A aprovação da resolução pelo Senado americano (seguindo-se a uma aprovação pela Câmara de Representantes) era uma antiga demanda simbólica da comunidade armênia, mas gerou uma reação imediata da Turquia. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ameaçou fechar a base aérea turca de Incirlik, que abriga armamento nuclear americano.
Erdogan chamou a resolução do Legislativo americano de "sem valor" e "o maior insulto" ao povo turco.
A resolução tem valor predominantemente simbólico e não é vinculante ao presidente americano.
Já o premiê armênio, Nikol Pashinyan, afirmou que a resolução era "um corajoso passo em direção à verdade e à justiça histórica".
Não é só nos EUA que o tema gera grandes sensibilidades internacionais. Quando o Senado brasileiro aprovou, em 2015 (ano do centenário da matança), um voto de solidariedade ao povo armênio, o governo da Turquia respondeu convocando para consultas seu então embaixador em Brasília. O ato tem forte simbolismo no meio diplomático, como uma expressão de descontentamento.
"Condenamos a resolução do Senado brasieiro sobre os eventos de 1915, que distorce as verdades históricas e ignora a lei, e a consideramos um exemplo de irresponsabilidade", dizia comunicado da época do Ministério das Relações Exteriores turco.
A seguir, a BBC explica os fatos históricos por trás da disputa, que influencia até hoje as relações internacionais da Turquia com o resto do mundo.
O que aconteceu com os armênios?
Há um consenso de que centenas de milhares de armênios morreram quando foram deportados em massa pelos turcos otomanos do leste da Anatólia (Ásia Menor) ao deserto da Síria em algum momento entre 1915 e 1916, durante a Primeira Guerra Mundial. Eles foram mortos ou morreram de fome ou doentes.
O número total de armênios mortos, entretanto, é alvo de debates. Os armênios dizem que 1,5 milhão morreram. Já a Turquia estima a conta em 300 mil.
Segundo a Associação Internacional dos Estudiosos de Genocídio (IAGS, na sigla em inglês), o saldo foi "mais de 1 milhão".
Em uma carta endereçada a Erdogan em 2005, a IAGS disse querer "destacar que não apenas os armênios dizem que o genocídio armênio ocorreu, mas a esmagadora maioria dos pesquisadores que estuda genocídio".
O que é genocídio?
O artigo número 2 da Convenção de Viena sobre Genocídio, de dezembro de 1948, descreve o genocídio como atos com o objetivo de "destruir, parcial ou totalmente, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional".
As mortes eram sistemáticas?
A polêmica sobre se ocorreu de fato um genocídio se centra na questão da premeditação ? o grau com que a matança foi orquestrada.
Muitos historiadores, governos e o povo armênio acreditam que houve um extermínio calculado, mas um grupo de estudiosos questiona isso.
Raphael Lemkin, um advogado judeu polonês que cunhou o termo "genocídio" em 1943, usa o termo para definir tanto as atrocidades contra os armênios quanto o extermínio de judeus pelos nazistas.
As autoridades turcas não negam que atrocidades tenham sido cometidas, mas argumentam que não houve uma tentativa sistemática de destruir o povo armênio. O governo do país diz que muitos muçulmanos inocentes também morreram em meio à guerra.
Qual era o contexto político?
Os 'Jovens Turcos' ? um movimento encabeçado por oficiais das Forças Armadas que tomou o poder em 1908 ? implementou uma série de medidas contra os armênios em meio à derrocada do Império Otomano. O grupo, que se chamava Comitê de Unidade e Progresso (CUP), entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado da Alemanha em 1914.
A propaganda turca naquela época apresentava os armênios como "sabotadores" e uma "quinta coluna" pró-Rússia.
Os armênios, por sua vez, marcam o dia 24 de abril de 1915 como o que consideram o início do genocídio. A data refere-se à prisão de 50 intelectuais e líderes comunitários armênios pelo governo otomano. Eles foram posteriormente executados.
Alguém foi responsabilizado pelos massacres?
Várias figuras do alto escalão do governo otomano foram levadas a julgamento na Turquia entre 1919 e 1920 por associação às atrocidades.
Um governador local, Mehmed Kemal, foi considerado culpado e morto por enforcamento pelo massacre dos armênios no distrito de Yozgat, na região central da Anatólia. O triunvirato dos Jovens Turcos ? os "Três Pashas" ? já havia fugido do país. Eles foram condenados à morte in absentia.
Historiadores vêm questionando os procedimentos judiciais desses julgamentos, a qualidade das provas apresentadas e o quanto as autoridades turcas tentaram agradar os Aliados vencedores.
Quais países reconhecem e quais não reconhecem o massacre como 'genocídio'?
Argentina, Bélgica, Canadá, França, Itália, Rússia e Uruguai estão entre os mais de 20 países que formalmente reconheceram o genocídio contra os armênios.
O Parlamento Europeu e a Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias da ONU também já o fizeram.
O Reino Unido, os Estados Unidos e Israel estão entre os que usam terminologias diferentes para descrever os eventos. O Brasil também não reconhece oficialmente o "genocídio". Em referências ao massacre, o governo se diz solidário às vítimas do que classifica como tragédia, mas não menciona a palavra genocídio.
De volta aos EUA, o turco Erdogan esteve em Washington no mês passado para uma reunião com Trump, que disse ser seu "fã".
Seu antecessor, Barack Obama, havia prometido em campanha reconhecer o massacre armênio como genocídio, mas não usou mais essa palavra quando se tornou presidente dos EUA.
Em 2015, às vésperas do centenário do ocorrido, a Turquia reagiu fortemente depois que o papa Francisco classificou o episódio como "o primeiro genocídio do século 20".
O governo turco convocou seu embaixador no Vaticano para consultas e acusou o papa de ter "discriminado o sofrimento das pessoas". Segundo o Ministério das Relações Exteriores do país, o pontífice "negligenciou as atrocidades que os turcos e os muçulmanos sofreram na Primeira Guerra Mundial e somente chamou atenção para o sofrimento dos cristãos, especialmente o do povo armênio".
Em 2006, a Turquia já havia condenado uma votação no Parlamento francês que tornaria crime negar que os armênios sofreram um genocídio. O projeto de lei não foi aprovado ? mas a Turquia suspendou relações militares com Paris.
Qual é o impacto político da disputa?
As mortes são consideradas um evento-chave da História moderna da Armênia e servem para explicar a diáspora. Até hoje, os armênios são um dos povos mais dispersos do mundo.
Na Turquia, o debate público sobre o ocorrido costuma ser sufocado.
O Artigo 301 do Código Penal do país, que prevê penas para quem insultar "a qualidade do ser turco", foi usado para processar escritores proeminentes que falam sobre o extermínio em massa dos armênios.
Entre eles estão os ganhadores do prêmio Nobel Orhan Pamuk e Hrant Dink, este último morto em janeiro de 2007. Um adolescente ultranacionalista, Ogun Samast, foi condenado a 23 anos de prisão em julho de 2011 por ter assassinado Dink, um armênio-turco que editava um jornal bilíngue.
Ao mesmo tempo, a União Europeia disse que a aceitação do genocídio armênio pela Turquia não é uma condição para a entrada do país no bloco comum, o que ainda está em negociação.
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