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Libertação de Auschwitz: a disputa entre a Rússia e a Polônia que ofusca aniversário da tomada do campo de extermínio nazista

Um dos maiores eventos em memória do Holocausto neste ano acontece em Yad Vashem, em Jerusalém - Getty Images
Um dos maiores eventos em memória do Holocausto neste ano acontece em Yad Vashem, em Jerusalém Imagem: Getty Images

Tom Bateman - De Jerusalém

23/01/2020 11h48

Cerimônia que marca 75º aniversário da libertação do campo de extermínio ameaça ser ofuscado pela queda de braço entre as duas potências sobre o legado da guerra.

A certidão de nascimento de Peter Feuerman não revela nada sobre seu passado.

Os pais dele eram judeus e escaparam do Gueto de Varsóvia durante a ocupação nazista da Polônia - a mãe estava grávida dele quando isso aconteceu.

O casal sobreviveu clandestinamente na estufa da residência de um contato que haviam feito na resistência polonesa.

Feuerman nasceu em 1944 e foi registrado com "documentos arianos falsos" para esconder sua identidade judaica.

Os pais dele escaparam antes de os nazistas destruírem o gueto - onde, no auge, estima-se que havia 400 mil judeus confinados em uma área de 3,4 quilômetros quadrados.

A maioria foi assassinada em campos de extermínio ou morreu em decorrência da fome ou de doenças, chegando a 3 milhões o número de judeus poloneses exterminados pelos nazistas.

Hoje, ele se vê diante de um "jogo político" sobre o legado do Holocausto.

A narrativa de assassinatos em massa e de luta pela sobrevivência que marcou o início da vida de Feuerman está no centro de uma disputa entre líderes nacionalistas rivais na Europa sobre as versões dos fatos.

Lista de convidados estrangeiros

Participei do encontro semanal que Feuerman, outros sobreviventes do Holocausto e judeus poloneses nascidos logo após a guerra fazem em um café de Tel Aviv.

Eles pediram café, mas alguns beberam um pouco de vodka - e o bate-papo logo se voltou para o presidente polonês, Andrzej Duda.

Duda disse que não vai comparecer à cerimônia em memória do Holocausto, nesta quinta-feira (23), no Yad Vashem, memorial do Holocausto em Jerusalém.

A decisão dele ameaçou ofuscar o evento, que vai estar repleto de líderes mundiais.

A cerimônia marca o 75º aniversário da libertação soviética do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Mais de um milhão de pessoas, sobretudo judeus, foram assassinadas pelos nazistas em Auschwitz.

O evento é um dos maiores encontros políticos da história de Israel - estão previstos discursos do presidente França, Emmanuel Macron, do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, e do príncipe Charles, do Reino Unido.

A solenidade, que também vai se concentrar no combate ao antissemitismo hoje, acontece quatro dias antes da cerimônia anual em memória da libertação de Auschwitz, organizada pela Polônia, no antigo campo de extermínio.

História 'deturpada'

O evento em Jerusalém foi organizado pela World Holocaust Forum Foundation, cujo fundador, Moshe Kantor, é próximo do presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Duda reclamou que não foi autorizado a discursar durante a cerimônia, enquanto Putin e outros líderes foram convidados a falar.

Ele também questionou o porquê de realizar a solenidade, argumentando que o "evento principal" acontecerá em seu país - ao qual Putin, por sua vez, não comparecerá.

O Yad Vashem argumenta que reservou o púlpito para as potências aliadas que derrotaram o nazismo (embora esteja previsto um discurso do presidente da Alemanha), enquanto o governo israelense tenta se distanciar do embate, dizendo que o convite para que Duda participe "continua de pé".

O episódio agravou uma disputa amarga entre a Rússia e a Polônia ? cujos líderes protagonizam uma queda de braço sobre o legado da guerra.

Putin afirmou recentemente que a Polônia foi conivente com o início da Segunda Guerra Mundial e, embora tenha se desculpado pelo o pacto inicial do ditador russo Josef Stálin com Adolf Hitler, descreveu o então embaixador polonês na Alemanha nazista como um "verme e porco antissemita".

O primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki, respondeu com uma declaração furiosa de quatro páginas, acusando Putin de mentir sobre a Polônia e "tentar reabilitar" Stálin de acordo com seus objetivos políticos hoje.

Agora, os líderes rivais são acusados de reescrever a história.

Agendas nacionalistas

A Segunda Guerra Mundial se tornou "o campo de batalha mais importante" para o governo nacionalista da Polônia, de acordo com o historiador polonês Pawel Machcewicz.

"O objetivo que eles declararam é usar a história como uma ferramenta para fortalecer a comunidade... se concentrando principalmente em elementos gloriosos e heroicos da história polonesa", explica.

Membros do partido conservador Lei e Justiça (PiS), que governa a Polônia, argumentam que o custo devastador da guerra é muitas vezes esquecido. Até 1,9 milhão de poloneses não judeus foram mortos pelos nazistas.

A resistência e o sofrimento dos poloneses na guerra são inquestionáveis, diz Machcewicz - mas ele acredita que os governos polonês e russo estão distorcendo a história como uma forma de apelo a suas bases nacionalistas.

Há dois anos, o governo polonês tornou ilegal dizer que o país foi conivente com crimes nazistas durante o Holocausto.

Depois de um protesto internacional, a Polônia acabou excluindo partes da lei, mas a controvérsia acabou envolvendo o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

Ele apoiou as alterações parciais e assinou uma declaração conjunta com o primeiro-ministro polonês.

Essa atitude foi condenada pelo Yad Vashem, que disse que a declaração continha "graves erros e decepções" e prejudicava a "memória histórica do Holocausto".

Netanyahu defendeu sua decisão dizendo ter consultado o historiador-chefe do Yad Vashem.

'Traição' do Holocausto

Mas entre seus críticos, estava o historiador israelense Zeev Sternhell, um sobrevivente judeu do Holocausto na Polônia que escapou do Gueto de Varsóvia quando criança com a ajuda de duas famílias polonesas.

Ele acusa Netanyahu de abraçar os ultranacionalistas na Europa, uma vez que eles fornecem um contrapeso à "ala liberal" da União Europeia, da França e da Alemanha, que criticam a ocupação de Israel dos territórios palestinos.

"Para que essa aliança funcione, ele está disposto a pagar um preço alto... E o preço alto é a traição ao Holocausto", diz.

De qualquer forma, a sensação para as pessoas sentadas naquele café, em Tel Aviv, é de que as solenidades deste ano estão mais voltadas para a política atual do que para os crimes do passado.