Vídeo de reunião inflama base mais fiel a governo, mas afasta apoio de outros grupos, dizem analistas
Gravação em que presidente reclama da PF e diz que iria interferir no órgão foi divulgada nesta sexta por decisão do STF.
A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello de retirar o sigilo de quase toda a gravação de uma reunião do presidente Jair Bolsonaro com ministros do governo no dia 22 de abril tornou públicas declarações do presidente queixando-se da atuação da Polícia Federal e dizendo que iria interferir no órgão.
Além disso, revelou ao país um encontro dentro do Palácio do Planalto repleto de ataques a outras autoridades, termos chulos e declarações de cunho autoritário.
O vídeo integra o inquérito aberto pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para investigar se Bolsonaro cometeu algum crime quando decidiu trocar o comando da Polícia Federal, dois dias depois de ameaçar interferir no órgão durante essa reunião — decisão que levou Sergio Moro a se demitir do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública no mesmo dia.
Caberá a Aras avaliar se as falas de Bolsonaro na reunião ministerial, somadas ao depoimento de testemunhas e outras eventuais provas, são indícios suficientes para apresentar uma denúncia criminal contra o presidente, o que teria potencial de provocar o fim do seu mandato.
Por enquanto, no campo político, a mera divulgação do vídeo não deve ser determinante para o futuro do governo, avaliam cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, ainda que a gravação mostre xingamentos de Bolsonaro a governadores, a defesa da prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal por parte de sua equipe e um grande desinteresse do governo em discutir medidas para enfrentar a pandemia do coronavírus, que já matou mais de 20 mil pessoas no país.
Na avaliação desses analistas, o conteúdo do vídeo deve até inflamar a base mais fiel a Bolsonaro, atiçando os apoiadores que simpatizam com o estilo do presidente de brigar com os outros Poderes (Congresso e STF), exaltar o uso de armas e usar uma linguagem direta e grosseira.
Por outro lado, afirmam, a gravação não deve agradar grupos mais moderados que já vêm retirando seu apoio a Bolsonaro devido à depressão econômica, às sucessivas crises produzidas dentro do próprio governo e por não aprovar a atuação do presidente na pandemia.
Pesquisas de opinião têm apontado gradativo aumento da rejeição a Bolsonaro nas últimas semanas.
"O vídeo não foi uma bala de prata, algo que provocasse uma perda terrível de capital político do Presidente da República. Acho que ele já perdeu bastante capital político antes disso e está cercado hoje por sua base mais fiel, que é sensível aos temas que foram tratados na reunião", afirma o cientista político Carlos Melo, professor do Insper.
O cientista político Antônio Lavareda, da Universidade Federal de Pernambuco, tem avaliação semelhante.
"O vídeo incita o bolsonarismo de raiz, porque mostra o estilo mais cru, espontâneo do presidente, o que revigora os ânimos desse eleitorado mais fiel. Por outro lado, a gravação afasta o eleitorado um pouco mais sofisticado, de classe média, que não é de raiz e chegou ao bolsonarismo no final da campanha presidencial de 2018", afirma.
Na reunião, enquanto criticava a atuação de prefeitos na pandemia de coronavírus, Bolsonaro chegou a defender que "o povo se arme". No dia seguinte, o governo publicou uma portaria elevando a quantidade de munição que civis com posse de arma autorizada poderia comprar.
"Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua", disse o presidente.
Em outro momento da reunião, ele cobra fidelidade dos ministros a suas bandeiras, ao se dirigir à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
"Quem não aceitar a minha, as minhas bandeiras, Damares: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado. Quem não aceitar isso, está no governo errado", afirmou Bolsonaro.
Vídeo não deve precipitar impeachment
Diante dessa expectativa de que o vídeo anime os apoiadores e desagrade os que já não apoiam o governo, os analistas ouvidos pela reportagem não acreditam que a divulgação do vídeo possa aumentar a pressão para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, inicie um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Já há mais de 30 pedidos apresentados nesse sentido, mas Maia têm dito que o momento é de o Congresso focar no enfrentamento à pandemia.
Para Antonio Lavareda, o andamento de um processo de impeachment dependeria de manifestações nas ruas pressionando o Congresso, o que é inviável devido às medidas de isolamento social para conter o coronavírus. Da mesma forma, ele acredita que a falta de mobilizações do tipo também reduzem o incentivo para que Augusto aras apresente uma denúncia contra Bolsonaro.
"Ao mesmo tempo que a pandemia prejudica o presidente, por causa da crise econômica e da avaliação ruim sobre a resposta do governo ao coronavírus, ela também vai empurrando pra frente (o governo) e inviabilizando qualquer desfecho mais rápido da crise política", afirma.
Para Carlos Melo, do Insper, o que deve repercutir de forma mais negativa do conteúdo do vídeo é ausência de uma discussão séria sobre medidas do governo para conter a pandemia do coronavírus. No dia da reunião, o Brasil registrava quase 3 mil mortes e mais de 45 mil pessoas contaminadas. Em um mês, já são mais de 330 mil casos da doença e mais de 20 mil mortes.
"É o mais sério que pode ser explorado politicamente porque isso mexe com a vida das pessoas. A pandemia é o grande tema mundial, o mundo está discutindo o que fazer, e eles estão (na reunião ministerial) focados na defesa do governo", observa o professor.
Apesar disso, Melo também não considera que isso seria suficiente para estimular o início de um processo de impeachment.
Na sua avaliação, o maior risco para o presidente está nas investigações conduzidas por Augusto Aras, principalmente depois que o empresário Paulo Marinho, ex-aliado de Bolsonaro hoje filiado ao PSDB, ter revelado que um dos filhos do presidente, o ex-deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro, lhe contou ter sido avisado por um delegado da PF no Rio de Janeiro sobre uma operação sigilosa que ocorreria no final de 2018, com potencial para afetá-lo.
Segundo Marinho, esse delegado disse a Flávio que a operação estava sendo segurada para não afetar a campanha presidencial de Jair Bolsonaro. Ela acabou deflagrada logo após a eleição, em novembro, atingindo deputados e servidores da Assembleia do Rio de Janeiro, mas sem envolver Flávio, então deputado estadual, e seu gabinete.
Depois disso, em dezembro de 2018, veio a público os indícios de que havia no gabinete de Flávio um esquema de rachadinha (quando pessoas contratadas devolvem parte do salário, num esquema de desvio de dinheiro público) operado por seu assessor Fabrício Queiroz.
Flávio nega qualquer ilegalidade em seu gabinete e acusa Marinho, que é seu suplente no Senado, de mentir para tentar ficar com seu cargo de senador.
Marinho prestou depoimentos ao Ministério Público Federal esta semana e Aras ainda avaliará se inclui essas acusações no inquérito que investiga a possível interferência de Bolsonaro na PF.
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