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Morte de George Floyd: 'Por que eu não quis ver o vídeo em que ele é sufocado por policial'

Muitos negros se colocam no lugar de vítimas como George Floyd - Getty Images
Muitos negros se colocam no lugar de vítimas como George Floyd Imagem: Getty Images

Sandrine Lungumbu

Serviço Mundial da BBC

05/06/2020 11h16

Desde que o vídeo mostrando um policial na cidade de Minneapolis sufocando George Floyd com seu joelho se tornou viral tem sido quase impossível evita-lo.

Mas eu, uma mulher negra, decidi que desta vez não vou assistir a esse vídeo.

Para mim, é mental e fisicamente desgastante assistir a mais um negro desarmado morrendo por causa de uma prisão feita por um policial branco.

Eu sei que muita gente vai me dizer que eu deveria celebrar que o vídeo se tornou viral porque revela uma verdade — a de um problema social sistêmico profundo que ocorre há séculos nos Estados Unidos. Para um jornalista, o que é mais importante do que revelar a verdade?

Traumático

Mas, ao longo dos anos, descobri que existe uma tênue linha entre expor atos horríveis e preservar minha sanidade mental — especialmente quando a história em questão é tão ligada à minha própria experiência.

Acho que qualquer pessoa que for assistir a esse vídeo vai ficar perturbada, mas, para uma pessoa negra como eu, essa perturbação vai além. Imagens como essa podem servir de gatilho para um trauma.

George Floyd gritava que não conseguia respirar ao ser imobilizado por um policial - Getty Images - Getty Images
George Floyd gritava que não conseguia respirar ao ser imobilizado por um policial
Imagem: Getty Images

Chorando quatro vezes por dia

Quando conversei com Nia Dumas, uma afro-americana de 20 anos que mora nos Estados Unidos, ela disse que não conseguia parar de chorar ao ver os últimos momentos da vida de George Floyd.

"Eu me via chorando às vezes quatro vezes por dia desde que assisti ao vídeo", diz ela. "Foi muito traumático."

Nia mora em Cleveland, no estado de Ohio, onde convive com muita violência. Quando estava crescendo, imagens de pessoas negras sendo mortas eram uma constante em sua vida.

"Se não é George Floyd, é outra pessoa. É demais para mim", ela diz.

"Assistir a esse vídeo me despertou memórias de quando Trayvon Martin foi morto. Eu tinha onze anos de idade na época e é louco que eu siga vendo coisas assim há anos. Estou cansada disso."

A estudante Nia mora no estado americano de Ohio - NIA DUMAS - NIA DUMAS
A estudante Nia mora no estado americano de Ohio
Imagem: NIA DUMAS

Trayvon Martin era um jovem de 17 anos que foi assassinado por um vigilante comunitário voluntário na Flórida. O autor da morte foi inocentado em 2012, ao alegar que o ato foi em legítima defesa. Martin estava desarmado quando foi morto.

Foi após o assassinato de Trayvon que surgiu pela primeira vez a hashtag Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português).

'Eu me sentia arrasado'

Desde então, a hashtag foi usada milhares de vezes.

Toni Adepegba, um jovem negro britânico, me falou sobre o impacto do racismo na sua saúde mental.

"Foi um mês pesado", ele diz. "Eu mal havia me recuperado de ver o assassinato de Ahmaud Arbary quando, de repente, tudo aconteceu de novo."

Ahmaud Arbery, de 25 anos, havia saído para correr na rua quando foi morto a tiros depois de se envolver em uma discussão com um pai e o filho deste no Estado da Geórgia.

Para Toni, ver os momentos finais da vida de George Floyd foi uma experiência avassaladora demais.

"Eu não tenho palavras para descrever o que estou sentindo. Eu me sinto arrasado. Eu me sinto cansado, porque estes homens poderiam ser eu."

No mesmo dia, ele já havia assistido a outro vídeo viral em que uma mulher branca de Nova York tinha chamado a polícia para denunciar um homem negro. O homem havia meramente pedido que a mulher colocasse uma coleira em seu cão, o que é uma regra no Central Park, onde eles estavam.

Operador de câmera Toni Adepegba: 'Poderia ter sido eu' - TONI ADEPEGBA - TONI ADEPEGBA
Operador de câmera Toni Adepegba: 'Poderia ter sido eu'
Imagem: TONI ADEPEGBA

"Isso foi um gatilho para mim porque expõe as dinâmicas do jogo. Ela tinha consciência do privilégio que possui sobre o homem negro por ser branca", diz Toni.

"Ela sabe que poderia conseguir prender esse homem ou até mata-lo com apenas um telefonema."

Toni não assistiu ao vídeo de George Floyd até o fim.

"Meu primeiro pensamento quando vi isso foi 'por que as pessoas ali estão paradas, só olhando (George Floyd sendo detido e imobilizado, com um policial colocando um joelho sobre seu pescoço)?', mas talvez elas tenham entendido que poderiam facilmente estar no lugar onde ele estava."

'Me identifiquei com estar indefeso'

Nas últimas semanas, conversei com várias pessoas sobre as vantagens de se compartilhar essas imagens nas mídias sociais.

Laëtitia Kandolo é uma mulher negra de 28 anos que mora em Paris. Sua família vem da República Democrática do Congo. Inicialmente, não foi fácil para ela assistir ao vídeo.

"Eram tantas emoções para processar ao mesmo tempo. Mas algumas horas depois, quando o vídeo não parava de ser comentado, resolvi tentar ver de novo. Ele estava completamente indefeso, e eu me identifiquei com essa condição", diz ela.

 A diretora criativa Laëtitia Kandolo trabalha na França e República Democrática do Congo - LAËTITIA KANDOLO - LAËTITIA KANDOLO
A diretora criativa Laëtitia Kandolo trabalha na França e República Democrática do Congo
Imagem: LAËTITIA KANDOLO

"Nós temos que achar um jeito de responsabilizar os racistas", disse Laëtitia. "Se esses vídeos fizerem as pessoas que se sentem privilegiadas por causa da cor da sua pele pararem para pensar, então que seja assim."

"Mas é importante lembrar que [os brancos] estão só assistindo ao vídeo, enquanto nós precisamos viver isso — essa é a nossa realidade."

Para muitos negros, ver esse vídeo sendo compartilhado por não-negros gera um debate sobre autenticidade.

Nia, dos Estados Unidos, é cética quanto às manifestações de apoio na internet, enquanto não forem abordadas questões como privilégio branco e racismo institucional.

"Eu vi muitas celebridades brancas compartilhando posts customizados, que eu acho que são meio artificiais", ela conta.

Ela gostou de ver que muitas pessoas genuinamente pareciam se importar. Mas ela não pretende "aplaudir o peixe só por ele estar nadando".

"Eu quero saber como você se sente, o que você como indivíduo pensa ou o que vai contribuir para a conversa. Nós normalizamos a ideia de que basta compartilhar um post, um vídeo ou retuitar algo em apoio... já passamos deste ponto agora."

A morte de George Floyd provocou uma onda de protestos - Getty Images - Getty Images
A morte de George Floyd provocou uma onda de protestos
Imagem: Getty Images

'Se eu estivesse nos Estados Unidos'

Quando negros se deparam com vídeos desse tipo, eles inevitavelmente se enxergam ali, ou a seus familiares e ancestrais.

"Eu corria bastante à noite quando o vídeo de Ahmaud surgiu", disse Toni. "Me ocorreu que haveria uma grande possibilidade de alguém telefonar para a polícia presumindo que eu estava fugindo de algum crime. Isso ainda me passa pela cabeça — de que se eu estivesse nos Estados Unidos, isso poderia ter acontecido comigo."

"Todos os negros têm um momento em que se dão conta de que são negros e do que isso significa no mundo", diz Laëtitia.

No caso dela, isso aconteceu durante uma conversa que teve com seu pai aos 18 anos de idade, quando ela revelou que queria cursar moda na faculdade.

"Ele me disse: 'você é negra e uma pessoa negra em um círculo artístico vai passar por dificuldades, você terá que trabalhar mais duro que todo mundo para ser percebida'. Isso me arrasou. Eu chorei."

Ahmaud Arbery foi morto por brancos no dia 23 de fevereiro nos Estados Unidos - Family Photo - Family Photo
Ahmaud Arbery foi morto por brancos no dia 23 de fevereiro nos Estados Unidos
Imagem: Family Photo

'A história dele é a minha história'

Negros ao redor do mundo sabem exatamente que a experiência de racismo varia de grandes extremos a pequenas microagressões diárias, todas fundamentadas na mesma história.

No meu caso, crescendo no leste de Londres, que é um ambiente multicultural, eu me sentia inicialmente protegida do racismo explícito. Mas quando entrei na faculdade para estudar jornalismo, me deparei com o "mundo real".

Meu penteado afro virou assunto de várias conversas. Se referiam a ele de diversas formas — desde "atrevido" ou "uma juba" a "desgrenhado", algo que poderia prejudicar minha carreira.

O trauma que muitos negros sofrem ao ver esses vídeos é ligado a esse tipo de memória, seja ela pessoal ou coletiva.

Manifestante chora durante protesto pela morte de George Floyd - Getty Images - Getty Images
Manifestante chora durante protesto pela morte de George Floyd
Imagem: Getty Images

"Eu acho que estamos percebendo cada vez mais que a história de George Floyd é também a minha história. Estamos conectados como parte de uma história mais ampla", diz Laëtitia.

"Essas imagens têm importância e peso histórico na vida dos negros. Das imagens de linchamento às de mutilação de mãos no Congo Belga, todas elas bem fortes. Eles tentam nos matar, mas nós ainda estamos aqui lutando para viver."

Mas essas imagens podem se tornar arrasadoras demais para um negro, ao ponto de prejudicar sua sanidade mental.

Recentemente, eu sentia uma pressão constante de ter que ler, compartilhar, dividir e engajar ativamente com tudo que está nas minhas mídias sociais sobre cada hashtag nova de cada assassinato racista.

Isso até surgir o vídeo de George Floyd. Foi quando passei a fazer um esforço consciente para me proteger.

Escolhendo prioridades

Toni disse que é preciso encontrar um equilíbrio entre participar de discussões sobre racismo e proteger a saúde mental.

"Existe uma necessidade de garantir que George Floyd não será esquecido", diz ele.

"Mas eu tenho dito a outros negros que eles não precisam se sentir obrigados a assistir a essas imagens ou compartilhá-las. Sanidade mental é prioridade. Não é uma questão de negros contra brancos. É algo sobre humanidade. Acho que as coisas só vão mudar quando parar de ser um problema 'deles' e passar a ser um problema 'nosso'."