Prisioneiro se correspondeu com a família costurando cartas em roupas no Holocausto
Detido pelos nazistas por ser judeu, Daniele Israel passou meses em uma prisão em Trieste, no nordeste da Itália, antes de ser deportado para os campos de concentração de Auschwitz, na Polônia.
As cartas que ele escreveu para sua mulher quando ela se escondia com os dois filhos só recentemente foram reveladas — e pintam um retrato profundamente comovente de uma família destruída pelo Holocausto, como ficou conhecido o genocídio dos judeus durante a 2ª Guerra Mundial.
"Meu pai era estofador, sabia costurar", diz Dario Israel, 85 anos, filho de Daniele.
Seu irmão Vittorio, 84 anos, concorda. "Costurar para ele era muito fácil. Tudo era muito simples."
Eles descrevem como o pai conseguiu contrabandear cartas de sua cela para fora da prisão de Coroneo. Daniele as costurava em golas e punhos de suas camisas sujas antes de serem levadas para lavar.
Duas ex-funcionárias não judias de sua loja de estofados pegavam suas roupas da prisão, mas, em vez de lavá-las, elas as entregavam, colocando as próprias vidas em risco, para o endereço onde a esposa de Daniele, Anna, estava escondida.
"É claro de que me lembro de quando as cartas chegavam. Sempre esperávamos por elas", diz Vittorio.
"Esperávamos que a roupa de nosso pai chegasse para minha mãe lavar, mas primeiro ela procurava as cartas nos colarinhos e punhos da camisa dele. Ela os descosia e tirava as cartas. Ficávamos sentados lá e ela nos lia o que papai nos havia escrito."
Vittorio lembra o misto de alegria, ansiedade e tristeza que os meninos, de oito e nove anos, sentiam ao ouvir as palavras do pai.
"Ele escreveu a maioria delas para nós, porque talvez quisesse nos ajudar a atravessar esse momento difícil. Ele muitas vezes escrevia perguntando como estávamos, o que estávamos fazendo. Ele queria cuidar de nós, garantir que não estivéssemos doentes. Em todas as suas cartas, ele expressava seu estado de espírito. Sempre temia por nós. Ele implorou a nossa mãe para ter cuidado e garantir que não fôssemos encontrados."
Anna lavava as camisas e costurava nelas suas respostas antes que as ex-funcionárias, ambas costureiras, recolhessem as roupas e as levassem de volta para a prisão — junto com papel, tinta e qualquer comida que Daniele tivesse solicitado.
Antes de ser detido, mas já temendo as prisões de judeus que começaram em Trieste, depois que a Alemanha assumiu o controle da Itália pós-Mussolini, em setembro de 1943, Daniele havia enviado temporariamente sua mulher e filhos para fora da cidade por segurança.
"Ele pensou que as coisas iriam se acalmar", suspira Vittorio, cerrando os olhos sob a luz do sol nas janelas de seu antigo apartamento na Via Giulia, não muito longe da sinagoga da cidade. É a primeira vez que ele e seu irmão retornam ao seu antigo endereço desde que emigraram para Israel, há mais de 70 anos.
No entanto, as coisas não se acalmaram e Daniele foi preso em sua loja de estofados com seu sogro em 30 de dezembro de 1943 ? sua sogra foi presa no mesmo dia nesse mesmo prédio na Via Giulia. Naquele momento, os meninos e a mãe retornaram secretamente a Trieste e se esconderam em um galpão de madeira pertencente ao cunhado de Anna, um carpinteiro católico.
"Ele tirou todas as coisas para nos dar esse lugar para morar. Era um cômodo sem luz, água ou janela, apenas uma pequena claraboia no telhado. Não havia sequer um banheiro. Ele contou a todos vizinhos que éramos refugiados de Pola [agora Pula, na Croácia], cuja casa havia sido bombardeada pelos americanos".
As autoridades alemãs pressionavam Daniele com frequência a revelar onde estava escondida sua família.
"Ele nos disse que o oficial da SS (organização paramilitar ligada ao Partido Nazista e a Adolf Hitler) vinha uma vez por semana perguntar se ele estava em contato conosco, porque como era possível que ele não soubesse onde estavam seus filhos e sua esposa? Meu pai continuava dizendo que não tinha contato conosco", diz Vittorio.
"Mais de uma vez", continua Dario, "ele escreveu que havia sido torturado porque o oficial havia dito que era impossível não saber onde estávamos. Mas ele suportou tudo e, após cada interrogatório, escrevia para nós naquele mesmo dia sobre isso".
Isso fez com que ocultar a correspondência fosse extremamente importante e, infelizmente — embora Anna tenha preservado todas as quase 250 cartas de Daniele — nenhuma das respostas familiares tenha sobrevivido.
"Ele as lia e as destruía imediatamente", diz Dario. Em uma das cartas, ele pediu a Anna que escolhesse com muito cuidado o tipo de papel em que ela escrevia, pois ele estava preocupado que o som de estalos pudesse atrair a atenção dos guardas.
"Se elas (cartas) caíssem nas mãos dos alemães, seria o fim dele. Eles o torturariam até conseguir algo. Foi sorte e vontade de Deus que nosso meio de comunicação nunca tenha sido descoberto".
"Ele avisou minha mãe que havia espiões, que ela não deveria confiar em ninguém."
As cartas contêm uma grande quantidade de informações sobre o cotidiano na prisão de Coroneo. Daniele escrevia sobre pessoas que haviam sido presas e trazidas para as celas e o que ele havia feito durante o dia.
Mas também há muita correspondência dolorosamente íntima. Daniele discorria como constantemente sentia falta da família e como as cartas de Anna eram o único conforto que tinha.
Ele também se lembrou de uma época em que seus filhos chegaram em casa chorando porque foram chamados por outras crianças de "porcos judeus" e agredidos. Em vez de consolá-los, tinha ficado bravo e os castigado por não se terem defendido. Daniele escreveu mais de uma vez pedindo perdão.
"Com tudo o que aconteceu mais tarde, o incidente realmente ficou na cabeça dele. Ele escreveu quanto remorso tinha (pelo episódio)", diz Vittorio. "Ele se arrependeu da morte."
Seu amor por seus filhos é revelado em todas as suas cartas, mas em uma das últimas, Daniele lhes fez uma surpresa.
"Em 20 de agosto, papai enviou uma carta para minha mãe e colocou 200 liras (moeda italiana na época) nela. Ele tinha 200 liras! E implorou: 'Por favor, compre um presente para Dario e Vittorio' na ocasião dos aniversários deles", diz Dario.
O conhecimento de Dario do que aconteceu vem da releitura das cartas e da conversa com Vittorio. Suas próprias memórias foram quase completamente apagadas como resultado de uma experiência traumática que ocorreu durante o bombardeio aliado de Trieste em 1944.
Dario esteve desaparecido por 24 horas e, quando voltou, não falou nada por muito tempo. Quando finalmente quebrou o silêncio, ficou claro que sua memória estava danificada; ele nem se lembrava de que seu pai estava na prisão.
A única experiência que Dario lembra hoje é um momento excepcional — quando sua mãe o levou para ver seu pai na prisão.
"O Coroneo tinha um pátio onde os prisioneiros podiam andar por algumas horas. Minha mãe me levou para uma casa em frente, até o último andar. Ela deve ter combinado com meu pai que íamos naquele dia. Ele acenou para nós e nós o vimos."
Daniele então escreveu para Anna: "Traga-me também Vittorio".
"Vi meu pai no pátio", diz Vittorio. "Vovô e vovó também estavam lá, mas não se viraram para olhar para nós. Foi apenas meu pai que olhou para cima e levantou o braço."
Durante os oito meses de Daniele na prisão de Coroneo, os Aliados ganhavam posições à medida que subiam do sul da Itália. Eles invadiram o Monte Cassino na primavera, tomaram Roma em junho e Florença em agosto. É possível que Daniele estivesse ciente disso, pois ele tinha acesso a jornais e às vezes escrevia suas cartas em pedaços rasgados.
Os filhos de Daniele acreditam que ele permaneceu em Trieste por tanto tempo por causa de suas habilidades como estofador.
Vittorio lembra como o pai era altamente respeitado antes da prisão e como sempre estava ocupado.
"Ele fazia cortinas, poltronas, colchões, tudo. Fez os assentos de couro para os tribunais. Todos o amavam."
Isso continuou após sua prisão.
"Os alemães e o diretor da prisão o obrigaram a fazer colchões para suas casas", diz Dario. Ele conta como o pai deles escreveu que fora levado para trabalhar em uma casa particular e poderia ter escapado pela janela do banheiro, mas perdeu a coragem e voltou para a prisão com seus guardas.
Nas cartas, Daniele conta que inicialmente ficou frustrado, pois via outros homens que foram presos depois dele deixando a prisão mais cedo.
"Ele via outros judeus de Trieste chegarem e pensava: 'Por que eles mandam todo mundo embora e não eu? Eu também quero sair daqui.'
"Papai não percebeu, contudo, que eles estavam indo para a morte", diz Vittorio.
Mas quando Daniele e seus sogros foram colocados em um trem para Auschwitz em 2 de setembro de 1944 "ele entendeu tudo", diz Vittorio.
Surpreendentemente, Daniele continuou a escrever. Vittorio diz que seu pai conhecia um dos funcionários da empresa ferroviária, que entregou uma carta final a Anna, escrita antes dele chegar ao campo de concentração.
"Meu pai deu a ele uma carta que foi trazida para nós. Naquela carta, meu pai escreveu: 'À distância, você pode ver a fumaça. Há muita fumaça aqui. É o inferno.'"
Os irmãos sabem que seus avós morreram em Auschwitz, mas a família nunca descobriu o que aconteceu com Daniele.
No fim da guerra, eles ouviram que seu pai havia sido visto vivo duas semanas antes da libertação do campo. Dario diz que a mãe deles o procurou por anos, através da Cruz Vermelha e sozinha, esperando que ele tivesse ido para a Rússia ou perdido a memória. Os irmãos acreditam que ele provavelmente tenha morrido durante as Marchas da Morte, quando os alemães tentaram transportar milhares de prisioneiros de Auschwitz para campos mais a oeste.
"Depois da guerra, voltamos a esta casa [na Via Giulia] e moramos aqui até 1949", diz Vittorio. Naquele momento, Anna finalmente perdeu a esperança e decidiu emigrar "porque meu pai havia escrito que, se ele não voltasse, deveríamos morar na Palestina".
Era uma ideia que ela e Daniele haviam discutido antes da guerra.
Em 1939, o casal visitara o estúdio de um fotógrafo com seus dois filhos para posar para uma foto de passaporte (a que ilustra o início desta reportagem). Daniele desejara emigrar, mas era difícil para Anna deixar seus pais e, no final, eles mudaram de ideia.
A preocupação com o bem-estar de seus pais acabou acarretando resultados desastrosos, que Anna teve que suportar durante toda a sua vida.
A coleção de cartas do marido foi uma das poucas coisas que ela levou ao deixar a Itália. Ela as mantinha a salvo em uma gaveta na sacola de tecido em que as carregara. Os irmãos as encontraram ao limpar seu apartamento em Tel Aviv depois que ela morreu 12 anos atrás, aos 96 anos.
"Nossa mãe considerava essas cartas o maior tesouro que tinha", diz Vittorio.
Mas ela as relia?
"Talvez ela às vezes fizesse isso, mas não em nossa presença. Talvez ela não quisesse nos causar dor."
A fim de evitar relembrar o passado de dor e sofrimento, Vittorio e Dario nunca falaram sobre o que tinha acontecido. Vittorio lembrou-se das cartas, mas só contou à família alguns anos antes da morte de Anna, quando seus netos foram convidados a reconstruir sua árvore genealógica para um projeto escolar. Mesmo assim, ele não tocou no assunto com Anna.
De fato, a matriarca mencionou as cartas uma vez. Ela as mostrou à esposa de Dario, que então contou a seu filho, Daniel. Mas Daniel também evitou tocar no assunto.
As cartas continuariam sendo um tesouro bem guardado da família se não fosse um encontro em 2017 com pesquisadores do MyHeritage, que estavam tentando localizar judeus da ilha grega de Corfu.
Muitos dos judeus de Trieste, incluindo membros da família de Dario e Vittorio, eram originalmente daquela localidade.
Quando Vittorio lhes mostrou a coleção, os pesquisadores perceberam instantaneamente quão preciosa era.
"É realmente um tesouro, um tesouro histórico. Acho que não encontraremos nada assim novamente", diz Elisabeth Zetland, uma das responsáveis pela pesquisa genealógica do MyHeritage.
Elisabeth passou meses transcrevendo e traduzindo as cartas de Daniele — ele escreveu uma média de uma por dia durante o período de encarceramento — revivendo dias e meses com ele. "Fazia isso o dia inteiro. Ia para casa e sonhava com Daniele", diz ela.
Na visão da pesquisadora, as cartas cristalizam as emoções pelas quais todos os judeus passaram durante a 2ª Guerra Mundial.
A princípio, Daniele não conseguia entender por que ele estava na prisão e achava que havia ocorrido algum erro. Depois, foi tomado por um misto de tédio, frustração, medo, mágoa, esperança e desespero. Elisabeth diz acreditar que a correspondência com sua esposa foi a única coisa que o impediu de enlouquecer.
"Ele estava destruído, muito deprimido. Estava com muito medo de sua família porque eles estavam se escondendo. Estava com mais medo por eles do que por si mesmo. Estava com medo de nunca mais vê-los, nunca mais os beijar, então escreveu cartas para as crianças a fim de dar-lhes conselhos sobre como se tornar bons homens".
Elisabeth e seus colegas fizeram traduções e cópias de todas as cartas para a família guardar. Os originais estão agora no Yad Vashem, o museu em memória às vítimas do Holocausto em Jerusalém, Israel.
Para os irmãos de Trieste, é uma homenagem reconfortante ao pai, que nunca teve seu próprio túmulo. E eles seguiram de bom grado o conselho que Daniele escreveu em uma carta que Dario lê em voz alta, antes que a emoção o silencie.
"Sejam bons e verdadeiros irmãos, amem-se sempre. Dessa forma, você fará feliz a mim e sua querida mãe, que é uma pessoa tão boa."
Em Trieste, onde recebeu a reportagem da BBC durante uma viagem com todos os filhos, Vittorio sorri calorosamente para o irmão. "Nós dois estamos sempre em contato, todos os dias."
Em Israel, Anna, Dario e Vittorio se estabeleceram na área de Tel Aviv. Vittorio trabalhou como carpinteiro, usando as habilidades adquiridas por seu tio, e Dario trabalhou como restaurador de móveis e piano.
No total, os irmãos têm quatro filhos (ambos deram o nome de um dos filhos de Daniel, em homenagem ao pai) e 13 netos. A carta final de Daniele, incluindo a descrição da fumaça em Auschwitz, foi perdida há alguns anos, mas Vittorio diz que se lembra claramente das palavras e até do papel em que ela estava escrita.
Os irmãos já haviam visitado Trieste, mas só voltaram para sua antiga casa na Via Giulia neste ano, para uma cerimônia para marcar a instalação de quatro stolpersteine — paralelepípedos de latão gravados — na calçada. Era uma homenagem ao pai, aos avós e à tia-avó.
Todos foram enviados para campos de concentração e apenas uma sobreviveu.
As pedras mostram o nome de cada pessoa, a data e o local de nascimento e morte.
Daniele Israel (Trieste, 1910 - Auschwitz, data desconhecida)
Vittorio Zadock Bisson (Arta, 1891 - Auschwitz, data desconhecida)
Stella Nacson Bisson (Veneza, 1891 - Auschwitz, 1944)
Rebecca Enrichetta Nacson (Corfu, 1900 - Trieste, 1986)
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