Seis efeitos da catástrofe provocada pela covid-19 na educação da América Latina
Por causa da pandemia de coronavírus, escolas no mundo inteiro tiveram de fechar — por vários meses — e se preparar, da noite para o dia, a ensinar à distância.
Mas nas áreas rurais mais remotas ou em bairros carentes, com pouco acesso à internet, as aulas online são praticamente impossíveis. Algumas alternativas foram criadas, como os professores distribuírem guias de trabalhos escolares de porta em porta ou os pais irem buscar estes na escola. Mas nem sempre isso foi possível e grande parte das crianças simplesmente ficou sem aulas.
A pandemia do coronavírus causou o fechamento temporário de milhares de escolas na América Latina, afetando 160 milhões de alunos, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
"Há crianças que ficaram sem aprender a ler ou escrever", disse à BBC Mundo Wilson León, um professor primário de Loman, uma área agrícola na Bolívia com acesso mínimo à internet.
Uma das coisas que mais o preocupa é a incerteza quanto ao futuro dos alunos e a impossibilidade de contatá-los. "Onde meus alunos moram não há sinal de internet", diz León, que costumava caminhar por horas para levar material didático de casa em casa, algo que não pode mais fazer.
Primeiro, porque o contágio disparou em seu distrito. E, segundo, porque o governo boliviano anunciou em agosto o encerramento antecipado do ano letivo, por falta de condições para garantir o acesso à educação virtual.
Como resultado, os alunos foram promovidos automaticamente ao ano seguinte, com um vazio de conhecimento que provavelmente será difícil de recuperar.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que cerca de 20% da população latino-americana não tem acesso adequado à internet móvel. E se não estiverem conectados, a possibilidade de famílias com filhos acompanharem as aulas é bastante baixa.
"A conectividade deve ser um direito humano", argumenta Claudia Uribe, diretora de Educação para a América Latina da entidade, em conversa com a BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). Mas enquanto isso não acontece, a região está exposta a "enfrentar uma catástrofe geracional" na educação, alerta Uribe.
Entenda esses e outros efeitos da pandemia na educação da região.
1. Interrupção da aprendizagem
O efeito mais óbvio do fechamento de escolas é a interrupção no aprendizado de milhões de crianças e adolescentes. Embora seja um problema em todos os níveis educacionais, quem mais sofre são as crianças que estão entrando na escola e os alunos que estão se formando.
Entre os mais novos, o risco está no déficit em habilidades básicas como ler e escrever ou somar e subtrair, essenciais para avançar nos próximos níveis. Já para os que estão se formando, o problema é que suas perspectivas de ingressar no ensino superior ou no mercado de trabalho se tornam mais difíceis.
2. Fome
A maioria das escolas públicas da América Latina distribui refeições gratuitas para crianças que não têm recursos econômicos para financiar o café da manhã e o almoço. Sem aulas, as crianças em situações mais vulneráveis ficam também sem a merenda, que muitos pais não conseguem substituir com refeições em casa.
3. Famílias despreparadas para ensinar
Nos casos em que alunos estudam online ou recebem roteiros de estudos, muitos pais não estão preparados para responder a perguntas e auxiliar no processo de ensino.
Durante a pandemia, essa grande responsabilidade recaiu sobre eles e geralmente se soma às responsabilidades de trabalho.
4. Desigualdade no acesso às aulas digitais
Em muitas áreas da região não há sinal de internet e há diversas dificuldades para sua implementação. Há países na África onde empresas como o Google investiram em experimentos como o envio de sinais por balões de ar quente, mas são iniciativas muito complexas para replicar em escala mais massiva, explica à BBC News Mundo Valtencir Mendes, especialista em programas de educação e inovação da Unesco.
"É difícil implementar essas alternativas porque o custo é muito alto", afirma.
Também há casas onde há acesso à internet, mas ele é limitado. "Há pais que me dizem que precisam escolher entre comprar crédito (para acessar a internet via 3G) ou comprar comida", diz um professor chileno que enfrenta esse tipo de problema trabalhando em áreas vulneráveis ??de Santiago.
Os especialistas concordam que, embora a exclusão digital sempre tenha existido, a pandemia destacou a desigualdade no acesso tecnológico.
5. Aumento da evasão escolar
Embora ainda não haja números sobre a evasão escolar na América Latina durante a pandemia, fontes consultadas pela BBC News Mundo em escolas e organizações que atuam em bairros pobres ou áreas remotas, dizem que há muitos alunos que abandonaram as aulas nos últimos meses em decorrência da pandemia.
"O maior problema é que alguns desses alunos não vão voltar", diz Uribe, porque alguns saem e se integram ao mercado de trabalho e muitas meninas ficam em casa ajudando no cuidado de familiares que precisam de assistência.
6. Violência doméstica e gravidez precoce
"Essa crise afetou mais as meninas", diz Mendes, porque em casa elas ficam expostas a situações de abuso ou simplesmente são relegadas ao trabalho doméstico.
A face mais dramática desta situação é que aumentaram as gravidezes prematuras e, em alguns países, os casamentos forçados.
O que pode ser feito?
Como o fechamento de escolas é uma situação muito grave, surgiram algumas iniciativas de emergência — por governos, empresas ou pela própria comunidade — que tentam mitigar parcialmente os efeitos disso.
Em muitos países da região, incluindo Brasil e México, governos centrais e locais lançaram programas educacionais por televisão e rádio, pensando especificamente nas famílias sem acesso à internet.
Especialistas como Mendes, da Unesco, dizem que estudos têm mostrado que as aulas por esses meios são uma boa opção se forem acompanhadas de material impresso, tutoriais por telefone ou algum tipo de acompanhamento aos alunos.
Se forem aulas na televisão ou no rádio sem nenhum outro suplemento, não geram bons resultados. "Os mais eficazes são os modelos híbridos", diz Mendes, citando como exemplo o plano que está sendo implementado no estado de São Paulo que combina aulas na televisão, recursos online e conteúdo em papel.
As aulas no estado foram interrompidas em meados de março com o fechamento de 5,4 mil escolas e, em setembro, apenas alguns estabelecimentos começaram a reabrir suas portas.
"Criamos um aplicativo para celulares, negociamos com operadoras de telefonia, para oferecer internet gratuita aos alunos mais pobres e transmitimos as aulas em dois canais de televisão", explica Rossieli Soares da Silva, secretário de Educação do Estado de São Paulo, à BBC Mundo.
E no México, desde o final de agosto, os alunos passaram a ter aulas pela televisão após um acordo do governo com emissoras para divulgação de conteúdo à distância, já que apenas 56% dos domicílios têm acesso à internet, segundo dados oficiais.
As autoridades esperam produzir 4.550 programas de televisão e 640 programas de rádio em espanhol e línguas indígenas. No entanto, os sindicatos de professores manifestaram objeções à iniciativa, argumentando que a aprendizagem não funciona através da observação de conteúdos informativos, mas por meio da interação com os alunos.
As alianças entre empresas e governos ou organizações internacionais também renderam formas de aumentar o acesso dos alunos aos conteúdos. Este ano, com a urgência imposta pela pandemia, novos projetos surgiram e os que já existiam foram ampliados.
Por exemplo, na Argentina, a empresa Telefónica fez um acordo com o governo para dar acesso gratuito a sites educacionais na internet durante a pandemia para famílias que não podem pagar pelo serviço.
E no Peru, a mesma empresa, em conjunto com o Facebook, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), criou a "Internet para Todos", uma firma que oferece serviços a operadoras móveis locais ajudando-as a chegar em áreas remotas.
Em menor escala, existem organizações que distribuem chips, telefones celulares, pacotes de dados, computadores e qualquer ferramenta que ajude a melhorar o acesso à internet.
E nas circunstâncias atuais, naquelas áreas onde as famílias não têm possibilidade de se conectar, existem organizações que distribuem tinta para impressoras nas escolas, para que os pais levem os deveres de casa para casa.
Existem também iniciativas para capacitar professores em habilidades digitais básicas. É o caso de um programa da Unicef com a empresa Tigo-Millicom, que já formou cerca de 130 mil professores na Bolívia e no Paraguai.
Ou o que a Technovation Chile está fazendo, com o apoio da operadora de telefonia Wom e outros fundos internacionais, distribuindo conteúdo digital — que também pode ser baixado e impresso em papel — em escolas que entregam cestas básicas para seus alunos.
Iniciativas das próprias comunidades
Embora existam iniciativas dos setores público e privado, a verdade é que a América Latina está repleta de lugares onde as crianças foram completamente excluídas do sistema escolar.
E enquanto a covid-19 continua a se espalhar, às vezes, a única alternativa é a ajuda dos vizinhos.
Vizinhos que, por exemplo, se juntam para conseguir impressoras e compartilhar as aulas, ou que se revezam compartilhando computadores ou a senha do wi-fi. Existem até pessoas que ajudam os alunos em seus locais de trabalho.
É o que faz Dalia Dávila, mexicana de Tlalpan, que divide a internet de sua lojinha de tortilhas com as crianças do bairro.
Dávila deixa à disposição delas um laptop, um celular e uma televisão. E para que as crianças não fiquem sentadas no chão, Dávila transformou o porta-malas de uma caminhonete em um local de aprendizado, apelidado de "cantinho da esperança".
Sua iniciativa fez tanto sucesso que as pessoas passaram a oferecer ajuda financeira por meio de "patrocínios" às crianças e a professores voluntários que reforçam o conteúdo veiculado na televisão.
"Encontrei outros lugares por perto onde as crianças podem continuar a aprender", diz Dávila, que agora compartilha o espaço com quase 60 crianças procurando ajuda.
"Estou muito feliz", diz ela com entusiasmo. "Gostaria que todas as crianças pudessem estudar."
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