Futuro da Suprema Corte dos EUA: O que pode mudar com substituição de Ruth Bader Ginsburg, de aborto a liberdade religiosa
A escolha do novo integrante da Suprema Corte dos Estados Unidos, em substituição à juíza Ruth Bader Ginsburg, poderá ter impacto por décadas na vida dos americanos. Ginsburg, ícone feminista e progressista da corte, morreu na última sexta-feira (18/09) aos 87 anos.
Nos Estados Unidos, os nove juízes da Suprema Corte têm cargo vitalício. O presidente americano, Donald Trump, disse que pretende indicar uma mulher para ocupar a vaga e deve anunciar sua decisão até o fim desta semana, às vésperas da eleição de 3 de novembro, em que busca um segundo mandato.
Caso o nome escolhido por Trump seja confirmado pelo Senado, a escolha aumentará a maioria conservadora da mais alta instância da Justiça americana. Isso poderá afetar decisões futuras sobre questões como aborto, liberdade religiosa, direitos LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e queer), saúde, meio ambiente e até mesmo sobre a eleição presidencial.
Ginsburg, nomeada em 1993 pelo presidente Bill Clinton, era uma entre quatro juízes da ala liberal da Suprema Corte. Do outro lado, há outros cinco juízes indicados por presidentes conservadores, do Partido Republicano. Entre eles, já há dois nomeados por Trump: Neil Gorsuch, em 2017, e Brett Kavanaugh, em 2018.
Apesar de os juízes conservadores já serem maioria, em várias decisões recentes o presidente da Corte, John Roberts (nomeado pelo presidente George W. Bush), votou com a ala liberal. Mas com a entrada de um novo nome indicado por Trump, a composição da Corte passará a ser de seis juízes conservadores e apenas três liberais.
Direito ao aborto
Uma das principais questões que podem ser afetadas por uma maioria conservadora consolidada é o direito ao aborto.
"Até sexta-feira, não estava claro o que aconteceria se um caso desafiando Roe versus Wade (a decisão da Suprema Corte de 1973 que garantiu o direito ao aborto em todo o país) chegasse ao tribunal", diz à BBC News Brasil o especialista em História da Suprema Corte americana Richard Friedman, professor de Direito na Universidade de Michigan.
"Caso o nomeado por Trump seja confirmado, acho que fica bem claro que reverteriam Roe versus Wade. E isso deixaria para os Estados a decisão sobre que restrições impor ao aborto."
Uma das motivações de vários conservadores que apoiam Trump - eleito em 2016 com os votos de 81% dos eleitores evangélicos brancos dos Estados Unidos - é a esperança de que uma Suprema Corte mais conservadora proíba o aborto no país.
A Constituição americana garante o direito ao aborto até o ponto de viabilidade fetal (a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero), que varia, mas ocorre geralmente em torno de 24 semanas de gestação. Depois desse ponto, cada Estado é livre para regular o procedimento (exceto quando for necessário para preservar a vida ou a saúde da mulher).
Desde Roe versus Wade, governos estaduais, principalmente comandados pelo Partido Republicano, vêm tentando dificultar o acesso ao aborto. Muitos proíbem o procedimento a partir de determinado ponto da gestação. Outros exigem períodos mínimos de espera, obrigatoriedade de múltiplas visitas à clínica, aconselhamento obrigatório ou, no caso de menores, necessidade de aprovação do pais.
Nos últimos anos, especialmente após a chegada dos conservadores Gorsuch e Kavanaugh à Suprema Corte, houve uma onda de leis estaduais restringindo o acesso ao aborto, algumas claramente inconstitucionais. Segundo analistas e ativistas dos dois lados do debate, o objetivo dessas leis era exatamente provocar contestações na Justiça, até que um caso chegasse à Suprema Corte, forçando uma decisão que poderia proibir o aborto e ter impacto nacional.
No caso mais recente sobre aborto analisado pela Suprema Corte, em junho deste ano, Roberts se aliou aos quatro juízes liberais para rejeitar restrições adotadas no Estado da Louisiana. Essa lei estadual, exigindo que médicos que façam abortos sejam ligados a hospitais próximos do local onde o procedimento é realizado, era quase idêntica a uma lei do Texas que já havia sido declarada inconstitucional pela Suprema Corte em 2016.
Mas, com uma maioria de seis conservadores, analistas consideram provável que a Corte aceite restrições ao aborto em um futuro caso. Mesmo que os juízes mantenham a decisão Roe versus Wade intacta, poderiam permitir limitações maiores ao aborto adotadas em leis estaduais. Assim, apesar de permanecer legal em nível nacional, o procedimento poderia se tornar inacessível para muitas mulheres, dependendo do tipo de restrição em cada Estado.
"Há duas maneiras de pensar sobre a questão do aborto (em um caso futuro na Suprema Corte)", diz à BBC News Brasil o especialista em direito constitucional Alan Morrison, da Universidade George Washington.
"Uma (possibilidade) é que Roe versus Wade seja completamente derrubada, o que permitiria que os Estados proíbam o aborto completamente. A outra, que considero mais provável, é aumentar as restrições, deixar que os Estados limitem as circunstâncias em que o aborto é permitido", afirma.
Liberdade religiosa e direitos LGBTQ+
Questões relacionadas à liberdade religiosa e aos direitos LGBTQ+ também podem sofrer impacto com uma nova maioria conservadora na Suprema Corte.
"(Principalmente) casos envolvendo isenções religiosas de certas exigências governamentais e casos envolvendo a capacidade do governo de cooperar e financiar instituições religiosas", diz à BBC News Brasil o especialista em lei e religião Michael Moreland, professor de Direito da Universidade Villanova, na Pensilvânia.
"A Corte já está se movendo na direção de permitir maior capacidade do governo de fazer isso e acho que essa nova nomeação provavelmente irá manter essa tendência", afirma Moreland.
É provável que a Suprema Corte analise casos futuros em que haja conflito entre liberdade religiosa e direitos LGBTQ+. Há casos em que a crença religiosa é usada para justificar, por exemplo, a recusa em prestar serviços a gays ou casais do mesmo sexo.
Em junho deste ano, em uma decisão considerada histórica, a Suprema Corte afirmou que empregados não podem sofrer discriminação no trabalho por serem gays ou transgêneros. Isso se seguiu a outra decisão histórica, em 2015, que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na decisão mais recente, Roberts e Gorsuch votaram com a ala liberal. O voto de Gorsuch, nomeado por Trump, foi recebido com decepção por conservadores que apoiam o presidente. Mas essa decisão deixou em aberto outras questões ligadas aos conflitos entre liberdade religiosa e discriminação contra pessoas LGBTQ+.
"A Corte realmente deixou pendente a questão sobre se é possível exigir que pessoas com objeções religiosas prestem serviços a casais gays. Minha aposta é que um nomeado por Trump votaria por permitir a recusa de serviço", afirma Friedman, da Universidade de Michigan.
Analistas ressaltam que não deve haver retrocesso na legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas decisões futuras podem afetar casais gays em situações em que têm algum tipo de serviço recusado por pessoas ou instituições que alegam que não devem ser obrigadas a prestar um serviço que vai contra sua crença religiosa.
"Não há interesse em revisitar a questão do casamento gay, que já foi decidida. Acho que a principal questão será se instituições religiosas que têm reservas sobre isso poderão agir de acordo com suas crenças (e recusar serviços)", observa Moreland, da Universidade Villanova.
Casos sobre que banheiro estudantes transgêneros podem usar nas escolas - se condizente com o gênero com o qual se identificam ou o sexo na certidão de nascimento - também poderão chegar à Suprema Corte.
Morrison, da Universidade George Washington, lembra que recentemente a Suprema Corte decidiu três casos sobre liberdade religiosa, sempre em favor do lado religioso.
"Esses casos envolviam principalmente a questão sobre se é possível retirar o financiamento de uma organização porque esta está agindo de acordo com sua crença religiosa mas em conflito com outras leis", lembra Morrison.
"E a Suprema Corte ficou do lado da proteção à liberdade religiosa nesses casos, quando havia conflito. E suspeito que isso vá continuar (com um novo integrante conservador)."
Saúde e meio ambiente
A nova composição da Suprema Corte também poderá ter impacto no acesso dos americanos a planos de saúde.
Em novembro, uma semana após a eleição, a Suprema Corte deverá ouvir os argumentos de um caso movido por procuradores gerais de Estados republicanos que dizem que o Affordable Care Act (ACA), a reforma da saúde sancionada pelo presidente Barack Obama em 2010 e apelidada de "Obamacare", é inconstitucional.
Há expectativa de que Roberts mais uma vez se una à ala liberal e vote para manter a lei em vigor. Se o caso for decidido antes que um novo integrante do tribunal assuma, isso resultaria em empate, com quatro juízes a favor e quatro contra - o que significaria que a decisão anterior de um tribunal de apelações, que derrubou partes da lei, continuaria valendo.
Se o novo membro já tiver sido confirmado, a lei poderia ser derrubada pela maioria conservadora, mesmo sem o voto de Roberts.
"Um juiz extra nomeado por Trump aumentaria a chance de que a Suprema Corte efetivamente acabe com o ACA", afirma Friedman.
Questões relacionadas à proteção ambiental também devem ser afetadas. Há vários casos desafiando medidas do governo Trump para relaxar regulações ambientais impostas pelo governo anterior. Alguns desses casos podem chegar à Suprema Corte e, segundo analistas, a maioria conservadora poderia votar em favor do governo Trump, permitindo a erosão dessas proteções ambientais.
"Os conservadores estão mais dispostos a reverter esforços para regular diferentes partes da vida, incluindo (questões relacionadas a) mudanças climáticas, saúde e outras questões", observa Morrison.
Mesmo que Trump perca a eleição de novembro, caso um novo nome conservador já tenha sido instalado na Suprema Corte, essa maioria poderia representar um obstáculo para que um futuro governo democrata implementasse novas regras ambientais.
Resultado das eleições
O impacto da ausência de Ginsburg poderá ser sentido na própria eleição deste ano, caso algum ponto relacionado à votação seja contestado e acabe na Suprema Corte.
Em meio à pandemia de coronavírus, muitos eleitores deverão votar pelo correio, para evitar o comparecimento a locais de votação lotados. Mas Trump vem promovendo uma campanha questionando esse tipo de votação e aventando a possibilidade de fraude.
Segundo críticos, a votação por correio é segura e o presidente estaria tentando limitar o comparecimento às urnas de eleitores democratas. E, então, disputas do tipo podem acabar na Justiça.
Além disso, diante do alto volume de cédulas pelo correio, muitos analistas afirmam que é provável que o resultado final da votação demore vários dias ou semanas para ser revelado. Há o temor de que um resultado com pouca diferença entre os dois candidatos também possa ser contestado na Justiça.
Na eleição de 2000, os votos do Estado da Flórida tiveram de ser recontados e a disputa foi solucionada por uma polêmica votação da Suprema Corte, com cinco votos contra quatro. A decisão deu a vitória ao republicano George W. Bush, que concorria com o democrata Al Gore.
"Não sabemos o que vai acontecer nesta eleição, se haverá questões levadas à Suprema Corte, como houve em 2000", ressalta Friedman. "Mas, se alguma questão significativa chegar à Suprema Corte, certamente Trump ficará mais feliz com outro juiz nomeado por ele no tribunal."
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