Topo

Esse conteúdo é antigo

As armas caseiras legais e sem registro por trás de onda de tiroteios nos EUA

"Armas fantasmas" são difíceis de se rastrear e burlam precauções como checagem de antecedentes criminais - Getty Images
'Armas fantasmas' são difíceis de se rastrear e burlam precauções como checagem de antecedentes criminais Imagem: Getty Images

12/04/2021 13h01Atualizada em 12/04/2021 13h07

Comprar uma arma legalmente nos Estados Unidos não é difícil.

Em alguns Estados, basta apenas ter a idade exigida por lei e ser aprovado em uma verificação de antecedentes criminais. Em outros, nem mesmo a checagem de antecedentes é necessária.

No entanto, existe uma maneira ainda mais simples de se conseguir uma arma sem a necessidade de verificação ou burocracia: construir a própria em casa.

Nos EUA, isso é simples - e legal. Basta encomendar pela internet um kit com diferentes peças e ferramentas.

Elas são conhecidas como ghost guns, ou "armas fantasmas".

E o resultado final é o mesmo: posse de arma de fogo, com a diferença de não existir um número de série. A arma, em muitos casos, pode estar ao alcance de menores de idade e pessoas com transtornos mentais.

Sem registro, nenhuma autoridade fica sabendo de sua existência.

O ATF (Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos) dos EUA, no entanto, as considera "legais", desde que sejam restritas para uso pessoal.

Mas, na quinta-feira (08/04), o presidente Joe Biden assinou uma ordem executiva para tentar controlar e restringir a venda de materiais e ferramentas que permitam a montagem desse tipo de arma em casa, além de outras medidas para tentar conter o que ele chama de "epidemia de violência com armas de fogo".

"A violência com armas de fogo neste país é uma epidemia e uma vergonha internacional", disse Biden na Casa Branca.

O presidente questionou a facilidade com que essas armas podem ser montadas e o perigo que representam.

"São armas caseiras. Consequentemente, qualquer pessoa, de criminoso a terrorista, pode comprar um kit e, em apenas 30 minutos, montar uma arma", disse.

Pouco depois do discurso de Biden, episódios de ataques a tiros foram relatados na Carolina do Sul e no Texas.

A venda legal de armas é protegida pela Segunda Emenda da Constituição dos EUA e qualquer tentativa de alterá-la é combatida por diferentes grupos, principalmente membros do partido Republicano fora de grandes cidades.

Vários parlamentares republicanos e organizações pró-armas criticaram a ordem executiva, que também busca banir outros dispositivos e investir recursos na prevenção de ataques com armas de fogo.

A NRA (National Rifle Association), principal organização de lobby defendendo armas do país, disse que as medidas de Biden são "extremas" e prometeu combatê-las na Justiça.

Problema crescente

Um relatório da Giffords, organização que defende maior controle de armas, observa que a popularidade desse tipo de arma tem crescido ao longo dos anos.

A entidade foi co-fundada pela congressista do Arizona Gabrielle Giffords, que sobreviveu a um ataque com armas.

No começo, diz o relatório, as armas fantasmas geralmente eram compradas por amadores que "tinham muito tempo livre" e que raramente se envolviam em crimes.

No entanto, as apreensões de dispositivos do tipo por autoridades têm crescido. Elas foram usadas em diversos ataques a tiros nos EUA na última década.

E geralmente estavam nas mãos de pessoas que não teriam condições de passar por verificações de antecedentes criminais.

De acordo com um relatório da entidade The Trace, apenas na Califórnia, 30% das armas recuperadas em 2019 não tinham números de série.

Brady, outro grupo contra a violência armada, cita uma reportagem da KABC-TV em que as autoridades afirmam que 41% das armas envolvidas em incidentes no Estado em 2020 eram fantasmas.

Diversas agências federais afirmam que os riscos desse tipo de arma não são apenas um problema para os EUA, mas também para outros países vizinhos.

Em 2013, Michael Yarbrough, um homem da cidade de Corpus Christi, no Texas, foi condenado a 10 anos de prisão por comprar mais de 900 kits e de vender alguns dos rifles do tipo AK-47 que ele montou para o México.

Tiroteios em massa em que "armas fantasmas" foram usadas

De acordo com estatísticas do Center for American Progress, "armas fantasmas foram usadas em vários tiroteios em massa" na última década:

  • Em julho de 2020, um homem proibido de portar armas matou duas pessoas na Pensilvânia com uma pistola 9 mm caseira.
  • Em novembro de 2019, um garoto de 16 anos atirou em cinco de seus colegas (dois deles foram mortos) na Saugus High School, na Califórnia, com uma pistola caseira, antes de atirar em si mesmo.
  • Em agosto de 2019, um homem usou um kit de arma caseiro para construir um calibre .223 que usou para disparar 41 tiros em 32 segundos em um bar em Dayton, Ohio. 11 pessoas morreram e 15 outras ficaram feridas.
  • Em 2017, no norte da Califórnia, um homem que foi proibido de ter armas de fogo encomendou kits para fazer rifles do tipo AR-15. Em 13 de novembro, ele iniciou uma série de tiroteios nos quais matou várias pessoas, incluindo sua esposa, e feriu quase uma dúzia.
  • Em 2013, um homem que não passou em uma verificação de antecedentes abriu fogo em Santa Monica, Califórnia, com um rifle AR-15 caseiro. Ele disparou 100 tiros, matou cinco pessoas e feriu várias em uma faculdade comunitária.

O problema do rastreamento

A pesquisa da Giffords indica que "armas fantasmas" também podem ser feitas de peças de plástico ou podem ser montadas com ajuda de impressoras 3D.

Kits e tutoriais online para montagem proliferaram na internet.

Nos EUA, geralmente, os fabricantes e importadores de armas colocam um número de série e marcas nas armas de fogo, que identificam o fabricante ou importador, marca, modelo e calibre, de acordo com relatórios da Giffords.

Em caso de emergência ou tiroteio, as autoridades podem rastrear essas armas até seu primeiro comprador.

No entanto, isso não é feito com "armas fantasmas".

Autoridades consideram armas de fogo apenas aquelas que estão prontas para uso, o que significa que as que não são tecnicamente acabadas ou que requerem algumas etapas adicionais antes de poderem ser usadas não estão sujeitas a fiscalização.

Assim, muitos vendedores consideram que não estão vendendo uma "arma de verdade", mas apenas peças, ou que não estão vendendo uma "arma pronta", pois requer certas etapas adicionais a serem feitas em casa.

Portanto, eles não são obrigados por lei a usar um número de série.

Não está claro no momento como o governo Biden tentará consertar essas "brechas" legais.

A ordem executiva assinada na quinta-feira dá ao Departamento de Justiça 30 dias para propor uma legislação que ajude a reduzir o número de "armas fantasmas" no país.