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Os dois países que oferecem 'tábua de salvação' ao Talibã

O líder político do Talebã Abdul Ghani Baradar (à esquerda) se encontrou com vice-primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores do Catar, Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani, em agosto - REUTERS
O líder político do Talebã Abdul Ghani Baradar (à esquerda) se encontrou com vice-primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores do Catar, Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani, em agosto Imagem: REUTERS

Tom Bateman - Correspondente da BBC no Oriente Médio

05/09/2021 08h29Atualizada em 05/09/2021 09h44

O Talibã festejou com um tiroteio em Cabul a saída de americanos e cidadãos de outros países do Afeganistão nesta semana. Mas essa militância não esconde o fato de que o grupo está globalmente isolado. Do outro lado, milhões de afegãos estão aflitos com um futuro ainda incerto.

As potências mundiais estão agora lutando para exercer influência em meio ao retorno do grupo radical ao poder. E, no processo, duas nações do mundo árabe e muçulmano emergiram como mediadores e facilitadores: Catar e Turquia.

Ambos estão capitalizando em cima de um recente acesso ao Talibã. Mas os dois países também estão se arriscando, o que pode até acirrar velhas rivalidades ainda mais distantes, no Oriente Médio.

As autoridades do Catar, pequeno país rico em gás no Golfo, forneceram ajuda para os países que estão tentando sair do Afeganistão.

"Ninguém foi capaz de realizar um grande processo de evacuação do Afeganistão sem o envolvimento de um catariano de uma forma ou de outra", explica Dina Esfandiary, consultora sênior do International Crisis Group, um grupo de estudos sobre conflitos globais.

"O Afeganistão e o Talibã serão uma vitória significativa para o Catar, não apenas porque mostrará que eles são capazes de fazer mediações com o Talibã, mas porque essa relação transforma o país em um jogador importante para os países ocidentais envolvidos", disse Esfandiary à BBC News.

À medida que ocidentais fugiam de Cabul, o valor diplomático desses contatos aumentou. O feed do Twitter da porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Catar, Lolwah Alkhater, parece uma esteira de congratulações pelos serviços do país durante essa crise.

"O Catar continua a ser um mediador confiável neste conflito", ela escreveu no início deste mês.

Mas construir uma ponte com o Talibã ainda pode conter riscos para o futuro, incluindo a capacidade de agravar os conflitos no Oriente Médio. A Turquia e o Catar estão mais próximos dos movimentos islâmicos da região, o que frequentemente cria tensão com potências como Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que veem esses grupos como uma ameaça.

Se os dois estados se fortalecerem por meio da diplomacia mundial com o Talibã no Sul da Ásia, a repercussão e a influência do grupo fundamentalista poderia chegar ao Oriente Médio?

Dina Esfandiary diz que a volta do Talibã ao poder constitui uma virada em direção ao islamismo radical - uma ideologia política que busca reordenar o governo e a sociedade de acordo com a lei islâmica. Mas ela diz que por enquanto isso permanece restrito ao sul da Ásia.

"O Talibã está no Afeganistão, mas não significa que ele vá para o Oriente Médio. Ao longo dos últimos 10 anos, a região tem oscilado entre grupos islâmicos e não islâmicos", ela diz.

Falando com o Talibã

Durante o período anterior do Talibã no poder, na década de 1990, apenas três países tinham laços formais com o grupo: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Os dois últimos cortaram todas as relações oficiais remanescentes após os ataques de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. No entanto, o financiamento secreto de indivíduos sauditas supostamente continuou por anos.

Autoridades sauditas negaram anteriormente a existência de qualquer financiamento formal ao Talibã e disseram que existem medidas rigorosas para impedir o fluxo de caixa privado à organização.

Mas à medida que a presença de tropas dos EUA no Afeganistão se tornou mais impopular entre os americanos, a porta se abriu para países que podiam participar da diplomacia.

Para o Catar e a Turquia, o contato com o Talibã se desenvolveu de maneiras diferentes.

Enquanto o governo do então presidente Barack Obama buscava encerrar a guerra, o Catar recebeu líderes do Talibã para discutir os esforços de paz a partir de 2011.

Esse tem sido um processo controverso e conflituoso. A imagem de uma bandeira do Talibã tremulando nos subúrbios de Doha ofendeu muita gente (eles encurtaram o mastro após um pedido americano).

Para os catarianos, a negociação ajudou a desenvolver uma ambição de três décadas por uma política externa autônoma - que o país considera crucial para uma nação que fica entre os polos regionais do Irã e da Arábia Saudita.

As negociações de Doha culminaram em um acordo no ano passado, assinado pelo então presidente dos EUA, Donald Trump, para a retirada americana do Afeganistão em maio deste ano. Após assumir o cargo, Joe Biden anunciou que iria prorrogar o prazo para uma retirada total até 11 de setembro.

'Otimismo cauteloso'

A Turquia, que tem fortes laços históricos e étnicos com o Afeganistão, está presente na região com tropas não combatentes - o país é o único membro de maioria muçulmana da aliança da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

De acordo com analistas, o país desenvolveu laços estreitos de inteligência com algumas milícias ligadas ao Talibã. A Turquia também é aliada do vizinho Paquistão, de cujos seminários religiosos surgiu o Talibã.

Na semana passada, as autoridades turcas mantiveram conversas com o Talibã por mais de três horas, enquanto o caos tomava conta do aeroporto de Cabul. Algumas das discussões foram sobre a futura operação no aeroporto da cidade, que as tropas turcas protegeram por seis anos.

O Talibã já havia insistido que os militares da Turquia saíssem junto com todas as outras forças estrangeiras para acabar com a "ocupação" do Afeganistão. Mas uma reunião da semana passada parecia fazer parte de uma agenda mais ampla, dizem os analistas.

O professor Ahmet Kasim Han, especialista em relações afegãs da Universidade Altinbas de Istambul, acredita que lidar com o Talibã oferece uma oportunidade ao presidente da Turquia, Recep Erdogan.

"Para tornar seu controle do poder sustentável, o Talibã precisa de ajuda e investimentos internacionais para continuar. O grupo nem mesmo consegue pagar pelos salários de seus funcionários públicos hoje", disse Han à BBC.

Ele explica que a Turquia pode tentar se posicionar como "fiadora, mediadora, facilitadora" - uma intermediária mais confiável do que a Rússia ou a China - que manteve suas embaixadas abertas em Cabul.

"A Turquia pode cumprir esse papel", diz ele.

Risco de reputação

Muitos países têm tentado manter alguma forma de contato com o Talibã desde a ocupação de Cabul pelo grupo, principalmente por meio do canal de Doha. Mas a Turquia está entre os que estão em uma posição mais forte para desenvolver laços no território, embora seja uma situação de risco.

Han também acredita que mais laços no Afeganistão permitem que o presidente Erdogan "amplie o tabuleiro de xadrez" de sua política externa e jogue com a base de apoio do Partido AK.

"Eles consideram a Turquia como um país com um destino manifesto - uma posição excepcional dentro do mundo muçulmano. Essa concepção é baseada no passado da Turquia e em sua herança otomana como sede do califado."

"No entanto, esse papel pode chegar a um ponto em que a Turquia vire patrocinador do Talibã, estabelecendo um regime de Sharia que é brutal. A Turquia não deve querer essa posição", acrescenta.

A ação de Erdogan supostamente também tem motivos mais "racionais" - melhorando as relações tensas da Turquia com os EUA e a Otan, e aumentando a influência para evitar fluxos de refugiados afegãos para a Turquia.

O presidente Recep Tayyip Erdogan disse que viu os posicionamentos dos líderes do Talibã com "otimismo cauteloso". Ele acrescentou que "não teria permissão de ninguém" sobre com quem falar, quando questionado sobre as críticas a seu contato com o grupo.

"Isso é diplomacia", disse ele durante uma entrevista coletiva.

Ele acrescentou: "A Turquia está pronta para dar todo tipo de apoio à unidade do Afeganistão, mas seguirá um caminho muito cauteloso."

Quanto ao Catar, as autoridades esperam que seu papel como mediador ajude a diminuir, em vez de aumentar, os anos de turbulência no Golfo. Doha intermediou negociações entre facções concorrentes em vários dos principais conflitos do Oriente Médio.

Mas, na esteira da Primavera Árabe, seus rivais do Golfo acusaram o país de se aliar aos islâmicos. Em 2017, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Bahrein cortaram laços - desde então restaurados -, acusando o Catar de se aproximar demais do Irã e alimentar a instabilidade por meio de seu canal de notícias estatal Al Jazeera.

Por enquanto, com uma situação profundamente incerta para o povo do Afeganistão, o Catar e a Turquia estão entre aqueles que falam com o Talibã. Já China e Rússia também competem por acesso futuro a Cabul.

O professor Han diz que essa é a opção menos pior, o que ele chama de "abordagem mais colaborativa".

"A Turquia, sendo um membro do Ocidente, é mais suscetível à pressão do Ocidente por questões de direitos humanos", explica.

O novo governo do Talibã apenas começou. Milhões de afegãos comuns aguardam com ansiedade os próximos acontecimentos.