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Queda de braço de Fernández e Kirchner expõe quebra na esquerda argentina

ALberto Fernández posa ao lado da atual vice-presidente (e ex-presidente da Argentina) Cristina Kirchner  - Reuters
ALberto Fernández posa ao lado da atual vice-presidente (e ex-presidente da Argentina) Cristina Kirchner Imagem: Reuters

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC News Brasil

17/09/2021 21h27

Na quinta-feira, a vice-presidente Cristina Kirchner chamou o presidente de 'neo' (neoliberal) e 'ocupa' (invasor) da Casa Rosada, e depois publicou carta com críticas a Fernández; ministros ligados à ex-presidente renunciaram.

A Argentina vive horas de tensão política envolvendo o presidente Alberto Fernández e sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, em uma queda de braço pública que inclui os rumos da economia e expõe a divisão na aliança que chegou a ser apontada como esperança de setores da esquerda regional diante da direita tradicional.

Na quinta-feira (16/09), quatro dias após a derrota do governo nas eleições primárias que antecedem as eleições legislativas de novembro, o distanciamento político e ideológico entre os dois foi ressaltado, primeiro, nas declarações de uma deputada kirchnerista que chamou Fernández de "neo" (neoliberal) e "ocupa" (invasor) da Casa Rosada.

Um dia antes, foi anunciada a renúncia coletiva de cinco ministros da base fiel à ex-presidente e que costumam se definir mais à esquerda. Entre eles, o ministro do Interior, Eduardo 'Wado' de Pedro, cujos pais eram militantes políticos e foram assassinados na ditadura militar (1976-1983).

Pouco depois da divulgação das declarações da deputada kirchnerista Fernanda Vallejos, na mesma quinta-feira, Cristina publicou uma longa carta, em suas redes sociais, criticando o presidente e sua gestão de governo. Ela sugeriu que a administração de Fernández estava seguindo a cartilha que eles deveriam evitar e que costuma ser associada à direita.

"Sinalizei (para Fernández) que achava que estava sendo realizada uma política de ajuste fiscal que não era adequada, que estava impactando de forma negativa na atividade econômica e, portanto, no conjunto da sociedade e que, sem dúvida, isto teria consequências eleitorais", escreveu a vice-presidente.

Ela afirmou ter dito ao presidente que os argentinos estão sofrendo perdas salariais, falta de trabalho e "descontrole de preços" e que essa situação deveria mudar. Segundo dados oficiais, divulgados nesta semana, a inflação argentina, em doze meses, registra 51,4%, incluindo o índice de 2,5% no mês de agosto.

Somente nos oito primeiros meses deste ano, a alta de preços foi de 32,4%, ainda de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). O dado supera os 29% previstos para todo este ano no orçamento do governo. O índice de pobreza, por sua vez, é de cerca de 44%, também de acordo com dados oficiais.

A Argentina já registrava inflação e pobreza em alta, durante o governo do ex-presidente Mauricio Macri, opositor do kirchnerismo, quando Fernández e Cristina assumiram a Presidência. A situação foi agravada durante a pandemia do novo coronavírus e, no passado, segundo levantamentos do Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia argentina encolheu cerca de 11% e junto com o Peru registrou um dos piores indicadores da região - excluindo a Venezuela, que teria tido retração acima de 20%, ainda segundo o organismo internacional.

Na missiva, a vice-presidente também recordou que Fernández chegou à Presidência porque foi ela quem, sozinha, o escolheu para ser candidato à Casa Rosada.

"Fiz (a escolha) com a certeza de que era o melhor para minha Pátria. Só peço ao presidente que honre essa decisão", escreveu. Segundo o jornal Página 12, de Buenos Aires, Alberto Fernández teria respondido, dizendo: "Ela me conhece. Sabe que não me submeto a pressões".

'Catástrofe política'

A dicotomia entre o presidente e a vice-presidente, que costumava ser comentada nos bastidores da política argentina, ganhou a esfera pública após a derrota do governo nas primárias que definiram os candidatos às eleições legislativas do dia 14 de novembro.

Foi uma "derrota eleitoral (para o kirchnerismo) sem precedentes em uma eleição legislativa", disse Cristina, que definiu o resultado como "catástrofe política".

No domingo, em um resultado que surpreendeu tanto o governo quanto a oposição, a frente opositora Juntos por el Cambio (Juntos pela Mudança), ligada ao ex-presidente Mauricio Macri, que costuma ser chamado pelos kirchneristas de "neoliberal", recebeu cerca de 40% da votação nacional.

A coalizão governista Frente de Todos contou com 31% dos votos. O restante dos votos foi distribuído entre os que se definem como de "esquerda pura" (5,8%) e a chamada "terceira via" (4,4%).

Em uma entrevista ao canal América TV, de Buenos Aires, o ministro da Economia, Martín Guzmán, negou que realize ajuste fiscal e afirmou que suas medidas são tomadas para "organizar" a economia, diante da pesada herança, disse, recebida do macrismo.

Guzmán é definido como o principal negociador do governo junto ao FMI com o qual tenta chegar a um acordo para a dívida de US$ 44 bilhões - empréstimo recorde do organismo - contraída durante o governo Macri.

Para analistas políticos de diferentes tendências, a difícil situação da economia argentina foi um dos fatores para o resultado eleitoral das primárias e que também poderia levar o governo a perder as eleições legislativas de novembro, quando serão renovadas metade das cadeiras da Câmara dos Deputados e um terço do Senado e se definirá se o governo manterá ou não a maioria no parlamento.

Num artigo, nesta sexta-feira, no jornal La Nación, de Buenos Aires, o analista político Sergio Berensztein disse que o panorama para o governo "é desolador, em termos eleitorais, políticos, institucionais e econômicos", diante da situação econômica e da "crise política" envolvendo o presidente e sua vice-presidente.

"A situação para o governo e para o presidente passou a ficar mais difícil depois da divulgação das imagens do aniversário da primeira-dama (Fabíola Yañez), no ano passado, quando o país obedecia as ordens do presidente, mas ele mesmo não cumpria o que exigia", disse o analista político Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria.

As fotos e vídeos da comemoração foram reveladas há cerca de um mês e foram registradas em julho do ano passado quando estava em vigor um dos decretos presidenciais com a exigência de isolamento social e a proibição de reuniões. Na época, Fernández registrava altos índices de popularidade, com patamares superiores a 60%, e agora, dependendo da pesquisa estaria entre 30% e 35%.

A notícia sobre a celebração na residência presidencial de Olivos levou o ex-presidente do Uruguai, José "Pepe" Mujica, referência da esquerda, a declarar que: "aos presidentes não podemos perdoar". Ou seja, algo imperdoável. Nesta sexta-feira, o jornal uruguaio El País publicou reportagem dizendo que, após a carta de Cristina, Fernández será um "submetido" a Cristina ou um independente.

Alberto Fernández já tinha sido criticado, em junho passado, quando afirmou que os brasileiros "vieram da selva" e os argentinos "dos barcos". Segundo contaram assessores à BBC News Brasil, ele tem o hábito de falar de improviso e esse teria sido um "ato falho". A repercussão interna e externa levou seus aliados a pedirem que não falasse mais de improviso, segundo a imprensa local.

No auge da popularidade do presidente, representantes dos movimentos sociais de esquerda na Argentina afirmaram que estava nascendo o "albertismo", que reforçaria os braços do tradicional peronismo, fundado pelo ex-presidente Juan Domingo Perón, na década de 1940, e do kirchnerismo, que surgiu a partir da eleição do ex-presidente Néstor Kirchner, em 2003.

Kirchner era marido de Cristina e morreu em 2010. O presidente Fernández tomou uma série de medidas que foram elogiadas pela esquerda, como a de dar exílio ao ex-presidente Evo Morales, logo após o conturbado processo eleitoral boliviano em 2019, e por ter visitado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na prisão em Curitiba, junto com o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, durante a campanha eleitoral.

No entanto, dois anos após o início de seu mandato, setores da esquerda passaram a questioná-lo. "A crise econômica fala mais forte", disse Fraga. Este seria um dos motivos do retorno das manifestações quase diárias, lideradas por movimentos sociais, como a desta sexta-feira, no centro de Buenos Aires.