Por que a China vê a Otan como ameaça e teme que chegue até suas fronteiras
"Se tocarem nos países da Otan, vamos responder", disse o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, no início de março.
Essa é a filosofia e a razão de ser da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança pela qual 30 países da Europa e da América do Norte se comprometem a responder com suas forças militares conjuntas no caso de um ataque externo a um deles.
Ou seja, a Otan define sua natureza como defensiva. Mas alguns países veem isso como uma ameaça à sua segurança.
A Rússia, que usou esse argumento para justificar uma invasão militar, é o exemplo mais claro, mas não o único.
Apesar de suas fronteiras estarem a milhares de quilômetros dos limites da Otan, a China expressa abertamente e cada vez mais sua desconfiança em relação à organização.
E com a invasão russa da Ucrânia, o atrito entre o gigante asiático e a aliança defensiva liderada pelos EUA se intensificou.
Assim como Moscou, Pequim culpou a Otan pelo conflito.
O Ministério das Relações Exteriores da China acusou a aliança militar ocidental de ter colocado a Rússia "contra a parede" ao aceitar 14 novos membros desde o fim da Guerra Fria, incluindo países que fazem fronteira com a nação eslava.
Por sua vez, a Otan denunciou a principal potência asiática por "minar a ordem global" em termos de segurança.
O norueguês Jens Stoltenberg, secretário-geral da organização, anunciou em abril que sua estratégia de defesa incluirá a China pela primeira vez, mais especificamente "como sua crescente influência e políticas coercitivas afetam nossa segurança".
Da indiferença à tensão
Hoje desconfiança, tensão e acusações mútuas marcam as relações entre Pequim e a aliança.
Mas nem sempre foi assim.
O historiador Jamie Shea, que ocupou vários cargos de responsabilidade na Otan entre 1988 e 2018, tendo ganhado visibilidade mundial durante a Guerra do Kosovo, de 1999, assegura que a relação entre a aliança e Pequim tem sido de indiferença mútua nas últimas décadas, com trocas periódicas que mal produziram frutos.
"Os chineses mostraram interesse na Otan quando esta entrou no Afeganistão em 2003, mas quando perceberam que não estava lá como uma força de ocupação permanente, mas para fins de estabilização e contraterrorismo, relaxaram e o interesse pela Otan desapareceu", assegura.
Embora raros e isolados, episódios de tensão entre a China e a Otan ocorreram no passado. Em 7 de maio de 1999, em uma operação da aliança, cinco bombas americanas atingiram a embaixada chinesa em Belgrado, matando três jornalistas. O então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, pediu desculpas e garantiu que foi por acidente. O evento provocou fortes protestos na China
O especialista observa que "até o momento não houve um Conselho Otan-China que permita que ambos os lados se reúnam regularmente e discutam desafios comuns ou percepções mútuas".
Wang Huiyao, presidente do centro de estudos da China e da Globalização (CGC) e conselheiro do governo chinês, explica que, devido à sua distância geográfica, Pequim "em princípio não deveria ter muitos problemas em comum com a Otan".
"Mas se a Otan divulgar uma declaração dizendo que a China é uma ameaça potencial, isso preocupa Pequim", ressalva.
"Otan são os EUA"
Wang argumenta que a estratégia da organização, apesar de seu afastamento e natureza defensiva, está em desacordo com a da China.
"A visão de futuro da China é que a globalização deve ir na direção da integração econômica, não da integração militar. Nesse sentido, a China não gosta da expansão militar da Otan liderada pelos EUA."
O especialista acredita ainda que os confrontos entre Pequim e a aliança atlântica "são reflexo das relações entre os EUA e a China, que se deterioraram nos últimos cinco ou seis anos".
"E os EUA lideram a Otan, e certamente a Otan reflete amplamente as decisões dos EUA. "
Shea, por sua vez, acredita que a China está se posicionando contra a expansão da Otan por razões puramente estratégicas.
"À medida que a China se alinha com a narrativa russa e a suposta supremacia dos valores autoritários sobre as democracias, deturpar a realidade da Otan se torna uma ferramenta conveniente e fácil para sua política externa e doméstica."
No entanto, a principal preocupação da China não é a ampliação da aliança militar atlântica para a Europa Oriental.
O que a China realmente mais teme
A China acredita que os Estados Unidos querem de fato instalar a Otan, ou um ramo da aliança, à sua porta.
"A Otan arruinou a Europa. Está agora tentando arruinar a Ásia-Pacífico e até o mundo?", protestou o Ministério das Relações Exteriores da China no fim de abril.
Um mês antes, o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, disse: "O objetivo real da estratégia dos EUA no Indo-Pacífico é criar uma filial da Otan na região".
As autoridades de Pequim repetiram com frequência essa acusação nos últimos meses.
Para entendê-la, é preciso se familiarizar com duas siglas: Aukus e Quad.
No fim de 2021, foi anunciada a criação do Aukus, um pacto de defesa pelo qual os EUA e o Reino Unido ajudarão a Austrália a adquirir submarinos movidos a energia nuclear.
Isso deixa a China desconfortável, que viu suas relações com a Austrália, cordiais até 2018, se deteriorarem cada vez mais, levando a episódios de tensão em vários campos, desde disputas territoriais no Mar da China Meridional até a pandemia e muito mais.
Mas o que mais preocupa a China é o Diálogo de Segurança Quadrilateral, mais conhecido como Quad.
Criado em 2007 e suspenso por quase uma década, o Quad foi revivido em 2017 e vem ganhando cada vez mais destaque até hoje.
Trata-se de um fórum estratégico que inclui a cooperação militar e exercícios de defesa entre os Estados Unidos, Austrália, Japão e Índia.
Japão e Índia são as duas potências asiáticas que rivalizam com a China, que também mantém tensas disputas territoriais com ambos e com outros Estados da região, como Filipinas, Vietnã ou Malásia.
Assim, a China vê o Quad não apenas como um desafio à sua crescente hegemonia na região, mas também como uma ameaça à sua segurança e, junto com o Aukus, uma tentativa camuflada dos Estados Unidos de montar uma Otan em sua vizinhança.
O professor Wang, que representa a posição do governo chinês, considera "preocupante que a Otan esteja se expandindo para a região do Indo-Pacífico" e diz que estão sendo feitas tentativas para estabelecer pelo menos "uma mini OTAN na região", algo que o regime de Xi Jinping não está disposto a aceitar.
Por sua vez, Jamie Shea nega que as alianças dos Estados Unidos no Pacífico tenham algo a ver com a Organização do Tratado do Atlântico Norte: "A Otan limita sua expansão ao continente europeu e não pode ser estendida a um país da região do Indo-Pacífico" .
"Embora tenha parceiros na região, como Japão, Austrália e Nova Zelândia, os pactos não conferem à Otan nenhum papel na defesa desses países se estiverem envolvidos em uma guerra contra a China", observa.
Otan global?
Mas quão absurda é a ideia de uma Otan se expandindo para além dos limites da Europa e da América do Norte?
A invasão militar russa da Ucrânia despertou uma preocupação latente no Ocidente e seus aliados: que a China fará o mesmo com Taiwan.
A secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, se pronunciou no fim de abril em favor de "uma OTAN global".
E ela fez isso de olho na China.
"Precisamos ficar à frente das ameaças no Indo-Pacífico, trabalhando com aliados como Japão e Austrália para garantir que o Pacífico seja protegido. Precisamos garantir que democracias como Taiwan possam se defender", argumentou.
Enquanto isso, os líderes dos 30 Estados-membros estão trabalhando no próximo "conceito estratégico" da OTAN, que definirá sua missão para a próxima década.
Seu conteúdo será anunciado na próxima cúpula da Aliança Atlântica, que acontecerá nos dias 29 e 30 de junho em Madri, na Espanha.
O documento definirá o peso da China entre as ameaças à segurança internacional segundo a Otan e será fundamental para endireitar ou distorcer ainda mais a complexa relação entre o bloco militar mais poderoso e a segunda maior potência do mundo hoje.
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