Por que os EUA decidiram relaxar sanções contra a Venezuela agora?
Preço do petróleo, pressão de outros líderes na América Latina, desejo de forçar retomada de negociações no país e de reverter a agenda de Trump explicam polêmica ação do governo Biden.
O governo dos Estados Unidos anunciou nesta terça-feira (17/5) que irá aliviar algumas das sanções impostas à economia da Venezuela ? punições que foram estabelecidas em resposta ao que Washington considera ações antidemocráticas do regime de Nicolás Maduro.
A medida acontece, de acordo com altos funcionários da gestão Biden, a pedido da oposição venezuelana, liderada por Juan Guaidó, que os americanos reconhecem como presidente interino do país.
Segundo os americanos, Guaidó teria acertado um retorno à mesa de negociações com o regime de Maduro, na Cidade do México, para a realização de eleições. As negociações estavam suspensas desde outubro de 2021.
"Reiteramos nossa total disposição para construir de maneira urgente um grande acordo político que permita alcançar a recuperação da Venezuela por meio da reinstitucionalização democrática do país", afirmou em nota o grupo Plataforma Unitária, que reúne diversos setores da oposição ao chavismo.
O governo Maduro comemorou o anúncio e a vice-presidente do país, Delcy Rodríguez, afirmou esperar que todas as sanções sejam extintas.
Petróleo e inflação
O passo ocorre depois que os EUA recorreram a conversas com integrantes do governo Maduro, em março, para sondar a possibilidade de retomada das negociações e a reabertura de seu mercado ao petróleo venezuelano, atualmente sob sanção, o que mitigaria os efeitos da crise de inflação de combustíveis gerada pelos embargos aos produtos russos, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, de Vladimir Putin.
À época, o líder da maioria no Senado, Dick Durbin (D-IL), explicou a opção entre banir do petróleo russo e reabrir negociações com a Venezuela: "A questão é o que é pior: o massacre de ucranianos inocentes por Putin todos os dias ou fazer negócios com o diabo por alguns dias?"
O início da guerra na Ucrânia representou um incremento de cerca de 20% no preço visto pelos americanos nas bombas de gasolina, um impacto considerável em um país que enfrenta a maior inflação em 40 anos. É um risco eleitoral para o governo Biden, que precisará enfrentar eleições legislativas de meio de mandato no fim do ano.
Autoridades americanas, no entanto, negam que o alívio às sanções contra a Venezuela agora tenha relação com a demanda global por combustíveis ou com a pressão doméstica da inflação e afirmam que a mudança é resultado do avanço das conversas lideradas pelos próprios venezuelanos.
"Nosso foco tem sido apoiar o governo interino (de Guaidó) a levar o regime (Maduro) a tomar passos de negociação na direção de eleições livres e justas. Este tem sido o foco, não o setor de petróleo, nem os preços do combustível", disse uma das autoridades americanas envolvidas nas negociações.
As medidas de alívio de sanções ainda não foram extensamente detalhadas pelo governo dos EUA, mas a BBC News Brasil apurou que, em conjunto com o Departamento de Estado, o Tesouro americano emitiu uma licença autorizando a petroleira americana Chevron a negociar os termos de potenciais atividades econômicas futuras na Venezuela.
A licença, no entanto, ainda não permitiria exploração e exportação de petróleo dos campos venezuelanos. Nas palavras de um assessor do governo Biden, seria uma licença meramente "para conversar". Os americanos devem também anunciar em breve a retirada de alguns nomes de empresários das listas de sanções.
"Nenhum desses alívios de pressão deve levar a um aumento de receita do regime (Maduro)", afirmou uma autoridade americana com conhecimento das medidas.
O argumento, porém, encontra ceticismo entre os estudiosos da relação entre EUA e América Latina.
"O governo Biden diz que a Chevron não vai poder extrair petróleo, apenas negociar com a PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana). Porém, o que as petroleiras fazem além de retirar petróleo e exportá-lo? O povo americano não é tão estúpido assim. Mais cedo ou mais tarde, a Chevron vai explorar petróleo e a PDVSA vai se beneficiar disso", afirma Ryan Berg, pesquisador de América Latina do Centro de Estratégia e Estudos Internacionais.
Alívio a pedido de quem?
Berg nota que os movimentos da administração Biden em relação à Venezuela têm causado desconforto no país e na região.
Segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, nem a oposição venezuelana, nem parceiros como Brasil e Colômbia foram avisados de antemão da visita-relâmpago de emissários de Biden ao regime Maduro, em março.
Entre esses países, que alinharam com Washington sua política em relação ao vizinho - de reconhecer Guaidó como chefe de Estado - houve dúvidas sobre o significado das ações do governo americano. Em visita recente ao Brasil, uma comitiva de alto nível do Departamento de Estado repetiu aos brasileiros que nada havia mudado na relação EUA-Venezuela.
Agora, diante de uma mudança que pode ter impactos consideráveis na área, os americanos tentam passar a mensagem que sua atuação aconteceu a pedido de Guaidó.
"Quero deixar bem claro aqui que os EUA estão fazendo isso em resposta às ações e às conversas que estão ocorrendo entre o regime (Maduro) e o governo interino (de Guaidó) em uma plataforma de unidade, sem que os EUA tenham estado envolvidos. Foi uma conversa deles e entre eles, e eles vieram até nós para pedir para tomar essas ações", afirmou um funcionário de alto nível da gestão Biden.
Segundo afirmou Berg à BBC News Brasil, a gestão Biden gostaria de ter revertido há mais tempo a política de "pressão máxima" nas sanções sobre a Venezuela, herdadas da gestão do republicano Donald Trump.
Para isso, no entanto, precisava que o governo Maduro avançasse nas negociações com a oposição, em conversas na Cidade do México, sob mediação da Noruega.
Porém, as negociações acabaram implodidas em outubro, quando a Justiça americana extraditou o aliado de Maduro, Alex Saab, de Cabo Verde, para cumprir pena nos EUA por lavagem de dinheiro relacionada às atividades de Saab com o governo venezuelano.
Para Maduro, a ação representou quebra de confiança e o governo se levantou da mesa. Para atraí-lo de volta, Washington teria concedido uma primeira conversa em março e aliviado sanções agora.
"É estranho que um país forte como os EUA tenha que fazer uma visita em março e agora levantar sanções em troca de um compromisso tão leve quanto apenas retornar para a mesa de negociações", afirma Berg.
Em um artigo publicado pela revista Foreign Policy nesta segunda-feira, apenas um dia antes do anúncio dos americanos, Isadora Zubillaga, vice-ministra das Relações Exteriores no gabinete de Juan Guaidó, ajuda a lançar dúvidas sobre quem endossa o alívio das sanções decidido pela Casa Branca e qual é o real interesse por trás da decisão.
"Como defensora de longa data da democracia venezuelana, acredito firmemente que ignorar a ditadura de Maduro (e fazer negócios com a Venezuela) na esperança de reduzir os preços domésticos da energia nos EUA não é apenas eticamente problemático, mas contraproducente e ineficaz. O petróleo venezuelano não reduzirá os preços dos combustíveis nos EUA no curto ou médio prazo nem servirá aos objetivos de longo prazo dos venezuelanos de garantir um país livre e democrático", escreveu Zubillaga.
À beira de um fiasco na América Latina?
A nova postura da gestão Biden em relação à Venezuela acontece ainda às vésperas da Cúpula das Américas, das quais os EUA serão anfitriões, em junho, em Los Angeles.
E embora os americanos estejam determinados a promover um encontro que transmita ao mundo, e especialmente à Rússia e à China, a percepção de que o continente está unido em torno da liderança da gestão Biden, a organização do evento tem patinado e líderes de peso ameaçam não comparecer.
É o caso do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que ameaça faltar ao evento. Recentemente, Obrador afirmou que Washington não deveria excluir ninguém do encontro, em referência aos líderes de Nicarágua, Cuba e Venezuela, que não devem ser convidados.
A diáspora dos dois últimos países é politicamente poderosa nos EUA - especialmente em um Estado pendular, a Flórida - e se opõe a qualquer concessão dos americanos aos governos de seus países, considerados ditaduras pelos EUA. Diante da necessidade de disputar o controle do Congresso, o governo Biden deixou claro que não considerava negociável convidar os três países para o encontro em Los Angeles. Se com isso ele preservou-se com as comunidades latinas nos EUA, ao aliviar sanções à Venezuela, ele faz uma jogada doméstica arriscada.
"Ainda assim, Biden resolveu arriscar com a audiência interna ao levantar as sanções contra a Venezuela e reduzir a pressão contra Cuba também", afirma Berg, em referência à autorização de maiores remessas de dinheiro para a ilha sob regime comunista, anunciada esta semana. "Pode ser que ele esteja fazendo isso como uma concessão a Obrador, ou diga isso, mas está acumulando desgastes internos e externos".
Ronald Sanders, embaixador de Antígua e Barbuda nos EUA, levou recentemente ao Departamento de Estado o recado de que boa parte dos mandatários do Caribe também estariam dispostos a furar o encontro se Cuba fosse excluída. A possibilidade de que não haja representantes da gestão Maduro, mas sim de Guaidó, também incomoda.
A tensão em torno do evento chamou a atenção de um dos antagonistas globais dos EUA.
"Cuba, Nicarágua e Venezuela não são países das Américas?" questionou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério de Relações Internacionais da China.
Já o mandatário brasileiro, Jair Bolsonaro, também ameaça não aparecer. Conhecido aliado de Trump, Bolsonaro se ressente de jamais ter tido um contato pessoal com o atual presidente americano, que assumiu em janeiro do ano passado.
Além disso, recados para que o brasileiro deixe de lançar dúvidas sobre o processo eleitoral de outubro e comentários públicos da gestão Biden de que o Brasil estaria "do lado errado da História" por conta da visita de Bolsonaro a Putin, em Moscou, uma semana antes da guerra estourar, criaram no Planalto a percepção de que não há muito a ganhar com o contato com Biden em meio a uma pré-campanha eleitoral.
Para analistas de América Latina, em um ano e meio de governo, Biden não foi capaz de criar uma agenda para a região que superasse o óbvio tema da migração e reaproximasse os países de Washington, depois de um grande afastamento durante a gestão Trump. Diplomatas latinos ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a gestão é lenta para oferecer linhas de financiamento e investimentos em infraestrutura e comércio para uma região que sofre com baixo crescimento (ou recessão) e inflação alta.
Nas palavras do site americano Político, em vez de unir o continente, o evento de Biden "atraiu vaias e ameaças de boicote".
"O que fica claro é que o governo Biden falhou em ter uma política para a América Latina que criasse grandes incentivos para que os líderes latinos estivessem presentes e custos altos para quem faltasse ao encontro. Acho que pode não apenas ser um fracasso, mas também um épico sinal do declínio do poder dos EUA no Hemisfério Ocidental", afirma Berg.
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