Agenda do presidente da Funai registra só 2 encontros com indígenas em 2022
Postura de Marcelo Xavier na fundação contrasta com gestões anteriores, quando indígenas eram recebidos com maior frequência pelo chefe do órgão; para organização indígena, Funai 'rompeu o diálogo' com as comunidades.
Chefe do órgão federal responsável pela coordenação da política indigenista no Brasil, o presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Xavier, teve apenas dois encontros com indígenas registrados em sua agenda oficial neste ano.
Nos 89 dias em que Xavier teve compromissos oficiais em 2022, ele recebeu indígenas pessoalmente em seu gabinete uma única vez, em 31 de maio, quando foi visitado por membros do povo Kayapó.
O outro encontro ocorreu em 20 de maio, quando Xavier esteve numa feira agropecuária em Brasília e visitou indígenas que participavam do evento.
A assessoria de imprensa da Funai confirmou à BBC que ele só esteve com indígenas nessas duas ocasiões em 2022.
A postura de Xavier contrasta com a de gestões anteriores na Funai, inclusive no início do governo Jair Bolsonaro, quando indígenas eram recebidos com maior frequência pelo chefe da fundação.
Na gestão do general Franklimberg de Freitas, que antecedeu Marcelo Xavier no cargo, o chefe da Funai recebeu mais de 500 lideranças indígenas em dezenas de encontros ao longo de seis meses e visitou 20 comunidades indígenas distintas, segundo uma nota no site da Funai.
Viagens a Mato Grosso
A agenda de Marcelo Xavier mostra ainda que Mato Grosso, Estado onde ele viveu antes de se mudar para Brasília, concentra a maior parte de suas viagens a trabalho.
Segundo a agenda, Xavier passou 27 dias de trabalho em Mato Grosso desde setembro de 2020, quando o portal do governo federal (Gov.br) começou a registrar seus compromissos oficiais após o site da Funai migrar para o domínio.
No mesmo período, ele não fez visitas a vários Estados com presença relevante de comunidades nativas ? caso de Estados das regiões Nordeste e Sul onde fica grande parte das terras indígenas em processo de demarcação no país.
A BBC questionou a Funai duas vezes sobre o porquê do predomínio das visitas de Marcelo Xavier a Mato Grosso, mas não houve resposta.
Em nota à BBC, a Funai disse que "mantém o compromisso de diálogo permanente com as lideranças indígenas de todo o Brasil".
O órgão afirmou ainda que, em 2022, foram recebidos na sede da Funai em Brasília membros de várias etnias e que, "na maioria dos encontros, houve participação de representantes da Presidência da fundação", ainda que Marcelo Xavier não estivesse presente.
'Rompimento do diálogo'
Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior organização indígena do país, diz à BBC que gestões anteriores da Funai eram mais abertas às comunidades indígenas.
"Mesmo que não saíssem as demandas que queríamos, pelo menos tínhamos acesso ao órgão", afirma.
"Já no governo atual, com o Marcelo (Xavier), houve um rompimento do diálogo com o movimento indígena", diz Terena. Segundo ele, somente grupos indígenas que "rezam a cartilha do governo" têm sido recebidos.
A agenda oficial de Xavier mostra que o Grupo dos Agricultores Indígenas, que reúne comunidades que plantam commodities agrícolas em larga escala, foi recebido duas vezes pelo chefe da Funai.
O grupo teve ainda o apoio da Funai para a realização do 1º Seminário Nacional dos Agricultores Indígenas, em abril de 2021.
A entidade tem como principal expoente a etnia Paresi, que cultiva soja em milhares de hectares de seu território, em Mato Grosso. Bolsonaro já elogiou o grupo e tenta estimular outras comunidades a aderirem a seus métodos.
De setembro de 2020 até o fim de 2021, a agenda oficial de Xavier cita outras 13 ocasiões em que o presidente da Funai recebeu líderes indígenas, entre os quais membros dos povos Xavante, Yawalapiti, Kamayurá e Kaingang.
Entre os recebidos estão Shirley Melgueiro, da etnia Baré, e Libiana Pompeu, do povo Guajajara - ambas com vários posts simpáticos a Bolsonaro em suas redes sociais.
Também foram recebidos grupos dos povos Cinta Larga e Suruí favoráveis à proposta do governo de liberar a mineração em terras indígenas.
Uma das raras lideranças abertamente críticas ao governo a terem se reunido com Xavier foi Alessandra Korap Munduruku, uma das principais expoentes de um movimento contra o garimpo ilegal no Pará.
Além dos 27 dias de trabalho em Mato Grosso desde setembro de 2020, o presidente da Funai fez nesse período viagens oficiais aos Estados de São Paulo (7 dias de viagem), Rio de Janeiro (2), Pará (2) e Roraima (2).
As informações sobre a agenda de Marcelo Xavier foram publicadas em atendimento à Lei 12.813/2013, que determina a divulgação dos compromissos públicos de pessoas em cargos de comando na administração federal, como ministros e presidentes de fundações públicas.
A Funai é subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Sumiço no Vale do Javari
Contestações à gestão de Xavier na Funai se intensificaram nos últimos dias por causa da posição do órgão frente ao desaparecimento, no início de junho, do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que estava licenciado da fundação e assessorava uma associação indígena no Vale do Javari, no Amazonas.
Em nota oficial após o desaparecimento, a Funai afirmou que a dupla não tinha autorização para visitar a Terra Indígena Vale do Javari e citou riscos que a expedição teria imposto a indígenas isolados que vivem no território.
A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), porém, afirmou em nota que Dom e Bruno não entraram no território indígena.
Numa decisão judicial na última terça-feira (14/06), a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe disse que as afirmações da Funai eram inverídicas, determinou que a fundação retirasse a nota do ar e evitasse "atos tendentes a desacreditar a trajetória" da dupla desaparecida.
A Funai não havia se manifestado sobre a decisão até a publicação desta reportagem.
Mudança de agenda
A substituição de Franklimberg de Freitas por Marcelo Xavier no comando da Funai, em julho de 2019, foi interpretada como uma vitória da chamada ala ruralista do governo sobre as alas evangélica e militar.
A ala ruralista é formada por representantes do setor agropecuário, uma das principais bases de apoio a Bolsonaro.
Franklimberg, um militar da reserva, já havia chefiado a Funai na gestão Michel Temer (MDB) e contava com o apoio da pastora evangélica Damares Alves (Republicanos), que foi ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro até março de 2022, quando deixou o cargo a tempo de se candidatar para a próxima eleição.
Pressões internas fizeram com que Franklimberg fosse substituído por Marcelo Xavier, indicado ao cargo pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, e um dos mais principais nomes do ruralismo no governo.
A agenda de Marcelo Xavier registra dois encontros com Nabhan Garcia desde setembro de 2020.
Também houve encontros com a então ministra da Agricultura Tereza Cristina e com os deputados federais bolsonaristas Nelson Barbudo (PL-MT), Carla Zambelli (PL-SP) e Alan Rick (União-AC).
Nenhuma autoridade, no entanto, se reuniu tanto com Xavier quanto o presidente Jair Bolsonaro, com 11 encontros desde setembro de 2020.
A situação difere da de governos anteriores, quando a questão indígena era tratada como um assunto secundário pela Presidência da República, e chefes da Funai raramente eram chamados ao Palácio do Planalto.
Antes de assumir a presidência, Bolsonaro disse que daria "uma foiçada no pescoço da Funai" e não demarcaria "nem um centímetro" de terras indígenas.
Além disso, Bolsonaro defende bandeiras que, segundo Alberto Terena, coordenador da Apib, são rejeitadas pela maioria dos indígenas do país, como a liberação da mineração em terras indígenas e a validade do conceito do "marco temporal", pelo qual as comunidades só têm direito às terras onde viviam em 1988.
A BBC questionou a Funai sobre as críticas da Apib à gestão de Xavier, mas não houve resposta.
Para Alberto Terena, "o presidente da Funai tem feito o que o governo demanda, mas não o que o órgão indigenista tem a atribuição de fazer, que é defender as comunidades indígenas e representar os nossos interesses".
"A Funai no momento tem sido uma ferramenta a mais do governo para investir contra os povos indígenas. Acabou virando um órgão anti-indígena", diz Terena.
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61818932
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